Duas duplas em direções opostas. Uma, improvável, em busca de remendar um erro do passado, a outra, composta por mãe e filha, unidas por uma quebra na hierarquia do laço familiar. O indie americano direto de Sundance “Janet Planet” de Annie Baker e o segundo filme de Levan Akin “Crossing” deram o tom no segundo dia da Berlinale.
Um filme tão silencioso que era quase possível ouvir a respiração de alguém do outro lado da sala gigante do Zoo Palast. Foi assim na estreia de “Janet Planet” da seção paralela Panorama em Berlim. O filme é estreia na realização da americana Annie Baker, dramaturga que em 2014 recebeu um prémio Pulitzer pela sua peça “The Flick”.
O filme é uma das várias produções da A24 em Berlim este ano, numa coprodução com a BBC, que chega na Berlinale depois da sua elogiada estreia em Sundance há poucas semanas. Conta a história da pequena Lacy (Zoe Ziegler), de 11 anos, uma menina tímida e introvertida que não consegue ficar longe da mãe, Janet (Julianne Nicholson).
“Janet Planet” se desdobra durante o verão de 1991, começando com uma cena marcante: Lacy, no meio da noite em um acampamento de verão, corre até um telefone público para implorar que sua mãe venha buscá-la, ameaçando em um ímpeto de desespero juvenil: “Se você não vier me buscar, eu vou me matar”. Sua mãe, sucumbindo à pressão emocional, atende ao pedido. A partir daí, o filme se desenvolve na casa de Janet, localizada no meio de uma floresta isolada de tudo, onde o verão de Lacy transcorre calmamente entre visitas esporádicas de amigos da mãe que vem e vão, aulas de piano com uma vizinha idosa e extensas caminhadas matinais com a mãe. À medida que mãe e filha passam mais tempo juntas, sua relação torna-se progressivamente mais claustrofóbica, culminando no momento em que a obsessão de Lacy pela mãe se rompe e o vínculo maternal se desfaz.
Na transição da dramaturgia para a realização, Barker se esforça para carregar cada cena com significado profundo, mas se perde em suas próprias ambições artísticas, saturando o filme com uma carga metafórica excessiva. O filme parece adotar fielmente o manual do “novo indie americano”, que abunda em Sundance, repleto de afetações e superficialidades; onde cada silêncio, pausa e estranheza é cuidadosamente calculado para causar um impacto na audiência. “Janet Planet” confunde silêncio com profundidade e lentidão com importância, esquecendo que até as narrativas mais introspectivas necessitam de pulso.
Deixando a falsa calmaria de “Janet Planet” para trás, nos lançamos numa aventura um tanto mais excitante. Falamos do belíssimo novo filme do sueco com raízes georgianas Levan Akin que abriu a paralela Panorama com “Crossing” sob uma chuva de calorosos aplausos.
Evocando as memórias afetivas do brasileiríssimo “Central do Brasil” — que aqui em Berlim, há 25 anos, arrebatou o Urso de Ouro de melhor filme e o prémio de melhor atriz para Fernanda Montenegro — o filme de Akin segue um caminho muito semelhante ao do brasileiro. Assim como no clássico de Walter Salles, “Crossing” conta a história uma professora aposentada e carrancuda, Lia, que na companhia de um menino por quem ela não nutre muita simpatia, embarcam numa jornada de autodescoberta, desencontros e vínculos inusitados.
A saga de Lia (Mzia Arabuli) e do jovem Achi (Lucas Kankava) se desdobra enquanto enquanto eles cruzam o mar negro de barco da Geórgia até Istanbul, a fim de encontrar a sobrinha trans de Lia, da qual ela não tem notícias há anos, e que agora se identifica pelo nome de Tekla. Desaparecida após ser rejeitada por sua família numa Geórgia rural e conservadora, a última informação que se sabe é que Tekla encontrou refúgio em Istambul. Ao chegarem na Turquia, sem um endereço em mãos e sem falar uma palavra turco, a dupla de protagonistas segue como que guiados pelo vento, cruzando caminhos com uma variedade de personagens que ora contribuem com pistas sobre o paradeiro de Tekla, ora dão vida ao microcosmo colorido, pulsante e caótico que é Istambul.
Para além disso, o filme de Akin emerge como uma exploração lúcida e terna da solidariedade trans e de experiências queer marginalizadas. Ao situá-lo entre a rústica Geórgia e a vibrante Istambul, o filme não apenas atravessa fronteiras geográficas, mas também desafia as barreiras da compreensão e aceitação. Em uma cena memorável, Lia encontra-se com um grupo de prostitutas trans a fim de saber pistas de Tekla. Sem dominar o turco, elas compartilham um momento de cumplicidade ao redor de uma mesa de chá, criando um espaço de comunicação que vai além das palavras enquanto desenvolvem um laço de sororidade muito peculiar entre mulheres de trajetórias distintas, ainda que unidas na luta por dignidade e reconhecimento.
“Crossing” é o filme a seguir de Akin após o seu “And Then We Danced” de 2019 ter feito uma impressionante carreira pelos festivais mundo afora e ter sido o candidato representante da Suécia no Oscar daquele ano. Aqui o realizador expande os seus horizontes temáticos, enquanto elabora uma lindíssima carta de amor à capital turca, que se lê com o coração apertado mas driblando as armadilhas do sentimentalismo pitoresco.
Mais do que um road movie, “Crossing” é uma introspecção melancólica sobre laços familiares (inter)rompidos e sobre a busca por uma redenção transformadora; um lugar onde, no cruzamento de destinos e desencontros, cada pecado encontra o seu caminho para a absolvição.