“Bowling Saturno”, a herança dos filhos devorados

O penúltimo filme da francesa Patricia Mazuy é uma história de violência geracional, onde o pai Saturno devora os seus filhos, que por sua vez, devoram o mundo ao seu redor.
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Com dois anos de atraso, chega a Portugal Bowling Saturno, o penúltimo filme da realizadora francesa Patricia Mazuy. Após estrear em competição no Festival de Locarno em 2022 e passar brevemente pelo DocLisboa no mesmo ano, o longa finalmente ganha sua estreia comercial em solo português, acompanhando a retrospectiva integral da filmografia da realizadora apresentada no último LEFFEST.

Com apenas sete filmes no currículo, Mazuy consolidou-se como uma autora de contrastes, transitando entre o cinema marginal e o de prestígio, mas sempre fiel à sua independência criativa e com as dinâmicas familiares como núcleo de suas narrativas. Em Bowling Saturno ela leva essas questões a um novo nível, não apenas revisitando o noir como género, mas desconstruindo-o como um espelho distorcido das dinâmicas patriarcais que ainda governam o mundo contemporâneo.

A história segue dois irmãos que herdam um boliche após a morte do pai, mas o negócio familiar logo se torna o cenário de crimes brutais que expõem as tensões de um legado de violência. Guillaume (Arieh Worthalter), um investigador da polícia determinado a resolver uma série de crimes na cidade, decide deixar o boliche aos cuidados de seu meio-irmão, Armand (Achille Reggiani), um homem enigmático e reservado, mas profundamente consumido pelo ódio ao pai.

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O boliche não é apenas um cenário, mas um microcosmo onde a violência simbólica e literal convergem. Nesse espaço enclausurado, Mazuy posiciona seus personagens como peças de um jogo perverso, onde cada jogada reforça as hierarquias de poder e familiares.
A relação entre dois irmãos não é nova na filmografia de Mazuy, mas representa uma evolução do olhar que começou lá no seu primeiro longa, Peaux de Vaches (1989), onde a chegada de um deles era o prenúncio que desencadeava uma história de violência. Aqui, Mazuy desloca essa dinâmica para um ambiente ainda mais claustrofóbico – o boliche que serve tanto como arena quanto como altar de celebração de uma masculinidade destrutiva, aprofundando-se no que significa ser homem num mundo onde a violência é identidade e herança.

Não é coincidência que Armand, o filho perturbado, carregue o mesmo nome do pai, nome que, aliás, como a personagem nos informa no início do filme, foi escolhido pela mãe. Um detalhe interessante a se notar aqui é que o ator que dá vida ao protagonista Armand, Achille Reggiani, é filho da realizadora, o que adiciona uma camada pessoal à narrativa e, possivelmente, influencia a extensão interpretativa sobre estes laços.

Em Bowling Saturno, a figura paterna – e talvez também materna – emerge como uma presença fantasmagórica que assombra os irmãos, moldando suas vidas e devorando-os em um ciclo de destruição.
Sem querer esticar demasiado a metáfora, é como se Mazuy estivesse criando sua própria versão do mito de Saturno, onde o pai devora seus filhos, reimaginando a brutalidade do mito em um purgatório moderno, onde as relações se distorcem e se alimentam de si mesmas. Uma ideia que não se limita ao título do filme, mas que também se manifesta em sua plástica sombria, dialogando diretamente com a violência grotesca da representação mais clássica desse mito, imortalizada na pintura de Goya, estabelecendo, assim, um elo perturbador entre o passado e as tragédias contemporâneas.

Esse aspecto visual do filme, aliás, adiciona outra camada de comentário, estilizado o suficiente para nos seduzir e brutalmente honesto para nos repelir. Esse domínio estético, entre as sombras densas do neon e a paleta claustrofóbica do negro e vermelho (de novo, as “pinturas negras” de Goya vêm à mente), transforma o noir em uma exploração moderna dos limites da violência como espetáculo. Não se trata de nostalgia cinematográfica, mas de uma escolha deliberada de Mazuy em usar os códigos do passado para revelar dinâmicas contemporâneas de poder. Sua composição visual atua como uma lente fragmentada, ampliando não apenas a violência explícita, mas também as camadas subtis de agressão que permeiam as relações destes personagens.

É nesse contexto que entra a protagonista feminina desta história de homens: Xuan (Y-Lan Lucas), uma determinada ativista dos direitos dos animais que começa a desenvolver uma relação amorosa com Guillaume. Embora, por vezes, a luta da personagem seja apresentada de forma caricaturizada, refletindo um ideal de moral romantizado, Xuan oferece um contraste interessante em relação aos homens que ali se encontram para celebrar a caça de animais.

Numa das cenas do confronto climático do filme, o boliche não funciona apenas como um local de encenação performática, mas também um santuário masculino. Ali, os homens da pequena cidade se reúnem semanalmente para celebrar o clube de caça ao qual pertencem, com o pai de Guillaume e Armand sendo uma figura respeitada na memória coletiva. Nesse momento, eles assistem orgulhosamente a vídeos de suas caçadas, enquanto Xuan, em silêncio, expressa seu protesto. Sob o pretexto de homenagear a memória do pai falecido, o espaço assume a forma de um palco ritualístico, onde as dinâmicas entre dominador e dominado se repetem por meio de atos simbólicos.

É também naquele palco que um serial killer encontra as suas vítimas, transformando o local num templo de exaltação viril e uma extensão do legado do pai; onde a violência contra corpos – especialmente femininos – é tanto simbólica quanto literal.

Em uma das cenas mais perturbadoras do filme, o ato sexual, e o flerte sensual que antecede a ele, é apresentado como uma longa performance de dominação, mas é imediatamente interrompido por um assassinato brutal que escancara o ciclo de violência que sustenta esse mundo. Mazuy rejeita qualquer glamourização desse ato, expondo a violência de forma gráfica e sem filtros como algo mecânico e banalizado, mas sem dar ao espectador qualquer alívio moral. Em vez disso, força-nos a contemplar como essas estruturas de poder e violência se perpetuam com nosso consentimento tácito.

Assim, as referências do noir clássico são novamente desconstruídas: os detetives e criminosos típicos são substituídos por homens comuns, protegidos pelas instituições que deveriam regulá-los, e dando continuidade ao seu ciclo de privilégios. Este modelo de supremacia masculina de Mazuy não é apenas uma estrutura de opressão, mas uma entidade parasitária, que se alimenta da violência como justificativa para sua própria existência.

Ao final, Mazuy nos entrega não um mistério a ser resolvido, mas uma revelação: o monstro que habita Bowling Saturno é o mesmo que habita nossas instituições, nossas casas e, talvez, até nós mesmos.

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