Nas casas de bairro fabril de uma vila erguida no Vale do Ave, pela manhã é-se criança. O percurso para a escola é conduzido por uma mochila carregada de vontades. Um santuário em forma de fábrica revela-se no horizonte das janelas, do interior da sala de aula. É difícil ver-se além das chaminés da produção quando se cresce em “Campos Belos”.
As crianças são quem tem nome e palavra no filme. A sua voz diz que mais vale ser-se humano que maçã. Neste filme o humano tem turnos de trabalho para industriais e hábitos de vida vulgares. Consumos associados à distração da realidade. Café, cigarros e cerveja. Há um preenchimento do espaço por barulho, conversa circunstancial, homens, fardas nos cabides e cachecóis que lembram velhos triunfos. Uma máquina de jogos tão obsoleta quanto este modo de vida. A câmara que filma em plano sequência num traveling unidirecional remete para um ritual de passagem. A vida segue.
De repente um silêncio ativa o espectador para escutar o que o realizador não quer sussurrar. Um cigarro pensante, que torna a vida num pormenor. Citando Felix Guattari, “sobre o ecrã do meu silêncio os teus enunciados assumirão o seu próprio relevo. Cada qual com seu cinema”. Há um vazio latente neste cigarro que lembra o prenúncio de morte (patente nos obituários nas paredes da vila) e que nos remete para a cena seguinte. O fim é protagonizado em jeito de western da vida real. O passo do homem cowboy solitário que segura o cão farejeiro, talvez em busca de um caminho certo, entrega-nos ao destino do filme, sem loops finais nem vazios radicais.
Para mim este fim de vida não significa a morte em si mas a morte como concretização de um desejo de libertação deste caminho condicionado pela própria génese. O tempo em “Campos Belos” passa-se do início ao fim de uma vida, num filme de pormenores, bem estruturado e que reflete seguramente o sítio onde se encontra. Muito mais se pode conjecturar sobre esta curta metragem, que se pode comparar em certos pontos ao neo-realismo italiano, incluindo o recurso aos não-atores, entre figurantes e protagonistas.
Foram 10 anos desde a última produção cinematográfica de David Ferreira. Assistimos, quiçá agora, ao renascimento do artista. Num filme lúcido, determinado e precisamente real aos dias de hoje.