Cannes 2023: A beleza camp de “May December” e o cinismo nauseabundo de “Club Zero”

"May December"

A competição voltou a aquecer no último fim de semana com a última colaboração entre Todd Haynes, Julianne Moore e Natalie Portman, no que é quase uma versão camp do “Persona” de Ingmar Bergman. No dia seguinte, a austríaca Jessica Hausner faz uma tentativa de ser o “Triângulo da Tristeza” de 2023, mas dá com os burros n’água.

Em “May December”, o seu mais recente filme, Todd Haynes continua a explorar a psiquê das suas mulheres à beira de um ataque de nervos. Embora repleto de tons novelescos, o filme é realizado com a destreza de um cinema com C maiúsculo, conduzido por um realizador determinado a resgatar a memória dos seus mestres, assim como já fizera no seu Longe do Paraíso de 2002, que era a uma belíssima reverência aos melodramas de Douglas Sirk.

Esta é a quarta colaboração entre Haynes e Julianne Moore, e desta vez junta-se ao ensamble estelar Natalie Portman, que foi quem apresentou o guião ao realizador, e o pianista brasileiro Marcelo Uchoa Zarvos, que conduz a música sumptuosa do filme, dando-lhe forma e baralhando o terreno atmosférico desse psicodrama Bergmaniano.

A história gira em torno de Elisabeth (Portman), uma atriz que se prepara para viver a personagem de Gracie (Julianne) no cinema. Vinte anos antes, Gracie ganhou as manchetes dos tablóides quando ela, aos 36 anos, teve um relacionamento com Joe (Charles Melton), um estudante de 13 anos de idade. Os dois foram pegos no ato numa das salas privadas da Pet Shop onde trabalhavam e o episódio virou um escândalo nacional. Após um período na prisão, Gracie não só retoma o relacionamento com o jovem Joe mas os dois se casam, têm três filhos juntos e parecem ter construído uma vida feliz a dois.
Agora, duas décadas mais tarde, a atriz Elisabeth viaja da Califórnia ao estado do Maine, e começa a frequentar a casa de Gracie para se preparar para o papel que vai interpretar e tentar desvendar o mistério da história dessa mulher que parece tão alheia ao abuso pelo qual foi condenada.

Este é um filme de performances e, sobretudo, sobre performances, ancorando a sua carga emocional nas atuações superlativas das suas atrizes, enquanto que as suas personagens canibalizam-se mutuamente, e mergulham numa espécie de loucura do inconsciente.
Haynes situa o registro do filme entre o classicismo formal de “Carol” e o território do drama doméstico e paranóico de “Safe”. É um filme que é consciente da sua dose camp mas ao mesmo tempo é também, assim como as suas personagens, mascarado por uma sofisticação burguesa que pretende esconder a violência contida nele.
“May December” é um filme muito atípico na filmografia de Haynes, mas que não poderia ter saído de outro universo que não o dele, mesmo que pareça estar sempre a se referir aos mestres do melodrama existencial, como Chabrol e Bergman.  

Note-se, aliás, que a personagem de Portman, Elisabeth, tem o mesmo nome da personagem imortalizada por Liv Ullmann no “Persona” de Bergman, e a piscadela de olho não parece ser mera coincidência. Elisabeth primeiro entra na vida de Gracie com sorrisos educados e fazendo suas anotações num bloquinho de notas, referindo-se a vida real de Gracie como material de pesquisa, mas as linhas de quem está estudando quem logo começam a ser borradas. “É uma história muito complexa e humana” diz Elisabeth, num estudado tom de condescendência, reafirmando a personagem de Moore. Mas pouco a pouco, assim como em “Persona”, Elisabeth, a de Portman, parece se perder entre a sua própria identidade e a que vai interpretar no cinema, chegando ao ponto de fazer avanços ao marido de Gracie. “A razão pela qual este filme aparenta ser perigoso é porque suas personagens não parecem saber onde estão os limites de ninguém” disse Julianne Moore na coletiva de imprensa.

“May December” foi um dos grandes sucessos da competição deste ano e até já foi adquirido pela Netflix, que o arrematou por 11 milhões de dólares (a Neon fez uma oferta inicial de 6 milhões) após todo o hype da sua estreia no festival. Mesmo se o filme não ficar entre o palmarés no sábado, a impressão que se tem é que sairá de Cannes fortalecido com um dos grandes acontecimentos desta edição.

club zero jessica hausner 35

Havia muita expectativa para o novo filme da austríaca Jessica Hausner, “Club Zero” que estreou no início da segunda semana de Cannes. A realizadora é uma presença habitual do festival. Três dos seus filmes mais antigos tiveream todos estreias na paralela Un Certain Regard: “Lovely Rita” (2001), “Hotel” (2004) e “Amour Fou” (2014). Em 2019 ela sobe para a competição principal com a sua primeira incursão na língua inglesa com “A Flor da Felicidade” que recebeu muitas reações positivas, então era mais que natural que “Club Zero” encontrasse a sua casa também por aqui.

O filme se desenrola numa prestigiada escola de elite toda elaborada em tons pastéis que parece ter saído de um filme do Wes Anderson. Ele começa com a chegada de uma jovem professora (Mia Wasikowska) para ministrar um curso em “alimentação consciente” e que imediatamente convence o seu pequeno grupo dos alunos sobre os benefícios – para o meio ambiente, para a economia global, para a saúde, para se manter em forma – que o abandono da alimentação traz. O grupo de alunos decide então se submeter aos ensinamentos da sua guru, quase como um bando de devotos de uma seita “terraplanista gratiluz”.

É um filme que quer causar uma reação na sua audiência, mas o cinismo nauseabundo de “Club Zero” causa mais indiferença que desconforto. O filme de Hausner vem daquele mesmo universo de “Triangle of Sadness”; ou seja, uma sátira cínica e superficial que visa alvos fáceis e que zomba impiedosamente de todos os seus personagens oferecendo muito pouco para a audiência aproveitar ou até se importar.

Assim como o filme de Ostlund, a realizadora se dedica a fazer troça de um bocado de temas da ordem do dia, como a técnica de “atenção plena” dos gurus do mindfulness, fanatismo dietético, veganismo (“Vegan is so out” diz uma das meninas do grupo à sua mãe) instituições educacionais de elite e, é claro, pessoas brancas e ricas. E estas tiradas petulantes e moralistas, repetidas uma atrás de outra, expõe uma certa exaustão de ideias.

E não só. O problema de “Club Zero” não recai somente na sua escassez de ideias, mas principalmente porque não tem a mesma ambição do filme de Ostlund; que apesar de toda aquela verborragia misantrópica, pelo menos arrancava umas boas risadas.

Hausner sempre foi comparada com o seu conterrâneo Michael Haneke, e assim como o mestre austríaco, que fez os seus filmes menores quando se aventurou pela língua inglesa, o filme de Hausner dá uma desconfortável sensação de estar constantemente “lost in translation” nas suas punchlines.

E este ano tem sido forte na presença de realizadores a trabalhar em outras línguas que não as suas nativas, e talvez isso de se mover por espaços desconhecidos, tem deixado os filmes à deriva, a procura de um sentido de existir.

Veja por exemplo o caso do talentosíssimo Karim Aïnouz, realizador brasileiro que venceu o prémio máximo da Un Certain Regard em 2019 com o belo “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, e que estreou no domingo com o seu primeiro filme em língua inglesa. “Firebrand” é um drama luxuoso de época que conta a história da sexta e última esposa do rei britânico Henrique VIII.

Com um elenco de luxo encabeçado por Jude Law e Alicia Vikander, e adaptado de um roteiro escrito por Henrietta Ashworth e Jessica Ashworth, a estreia do brasileiro tem cara daquelas séries de tv de luxo, do naipe de “Game of Thrones”, só que com um verniz feminista artificial e que tem muito pouco da marca do cinema de Aïnouz.

Com ainda quatro dias de filmes para estrear, a competição de Cannes 2023 parece mais interessada em cumprir uma certa lealdade com os seus autores habituais do que apostar em cinema novo, inquietante e que não nos deixe apenas indiferentes. Esperamos que dias melhores virão.

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