Ainda não é o grande filme da competição de uma Berlinale que anda adormecida na sua competição principal, mas o novo filme da francesa Claire Denis é desde já o melhor filme em concurso.
Meia dúzia de filmes estreados no primeiro fim de semana da Berlinale e ainda não descobrimos o filme sensação desta edição. Claire Denis quase chega lá perto, tirando a competição do seu estado catótonico com o belo Avec Amour et Acharnement (Both Sides of the Blade). O filme reúne mais uma vez Claire Denis com a argumentista Christine Angot e Juliette Binoche, que juntas em 2017 colaboraram em Deixe a Luz do Sol Entrar.
O filme abre em imagens deslumbrantes com o casal central, Binoche e Vincent Lindon, nos braços um do outro no meio do mar, enquanto a música melancólica dos Tindersticks faz a banda sonora ao fundo. Binoche e Lindon juntos compartilham uma química intensa, e Denis dirige os dois com uma sensualidade tão elegante e harmoniosa que ali, já desde o princípio, o filme parece ter encontrado a sua força. Essa sensualidade, que é quase jazzística na forma como Denis merge os corpos dos seus protagonistas com a música dos Tindersticks nos trouxe à memória um filme belíssimo de Mike Figgis, One Night Stand (1997); o filme que Figgis fez logo após colher os louros da fama com o seu devastador Morrer em Las Vegas.
O filme de Figgis para além da forma como filmava os corpos e a música, e as consequências das relações extra-conjugais de um casal, também tinha um triângulo amoroso no seu centro. Sara (Binoche) e Jean (Lindon) estão há dez anos em um relacionamento amoroso, vivendo juntos no mesmo apartamento no centro de Paris. Ela apresenta um programa político na rádio, enquanto que Jean tenta lentamente pôr a vida profissional em ordem, depois de uma década na prisão por um crime que nunca é revelado. Jean é o parceiro ideal, compreensível e solidário, divide o seu tempo entre a sua mãe idosa e carente de atenção e o seu filho mestiço Marcus (Issa Perica), vindo de um casamento anterior.
O terceiro lado do triângulo é composto pelo beau François, interpretado pelo ator Grégoire Colin, que em 1999 fora imortalizado como o soldado Gilles no filme mais conhecido de Claire Denis, Beau Travail. François é um amor antigo de Sara que, num impulso, dez anos antes, ela abandonou para ficar com Jean. Sara não têm notícias de François desde então, mas numa certa manhã, perto do seu trabalho, Sara avista François pela rua e todos os seus antigos sentimentos são reacendidos.
Esses três indivíduos são a base de um romance que Denis se utiliza para explorar a individualidade dentro de uma relação e uma certa alienação de classe. A realizadora forja um terreno dramático que pode ser facilmente atribuído a um romance burguês: infidelidade, ruptura conjugal e questões de moralidade que vão além do romance entre eles… como o pai branco que não compreende as circunstâncias e o contexto em que está inserido o seu filho, que é negro.
Mas o centro da narrativa é Sara que, dividida entre dois amores, comporta-se como se habitasse dois corpos distintos, como se tivesse alheia às consequências das suas ações. Talvez daí as “both sides of the blade”, como explica o título em inglês.
No entanto, apesar da dor que esses personagens infligem uns aos outros, Denis tenta sempre demonstrar alguma simpatia por eles; e mesmo que às vezes não compreendemos de facto as suas atitudes, é possível reconhecê-los por quem eles são, imperfeitos e idiossincráticos como todos nós.
Assim como no filme de Figgis, o efeito aqui é mordaz e doloroso; e contraria a ideia romântica de que os relacionamentos se aprofundam e transcendem com o passar do tempo. Denis não está interessada em expôr o casamento como uma instituição falida, mas quer sim lutar contra a impossibilidade de um amor duradouro, investigando e exteriorizando cada uma das suas contradições.