Não está a ser uma temporada de prémios normal em Hollywood. Os incêndios em Los Angeles atrasaram vários eventos, o uso de ferramentas de inteligência artificial para melhorar o sotaque dos atores em “The Brutalist“, a ausência de um intimacy coordinator em “Anora” e as afirmações controversas do realizador de “Emilia Pérez” são algumas das polémicas que têm marcado este ano. Assim, é também este último filme a origem da maior revolta de alguns ávidos seguidores do mundo do cinema. “Emilia Pérez”, realizado pelo premiado Jacques Audiard, estreou no último festival de Cannes, em 2024, de onde saiu vencedor do Prémio do Júri – visto por muitos como o terceiro lugar da secção Em Competição (“Anora” venceu a Palma de Ouro e “All We Imagine as Light” venceu o Grande Prémio do Júri). Para além deste grande prémio, o júri decidiu abrir uma exceção e dar o prémio de Melhor Atriz não só a uma mas às quatro atrizes do filme (Selena Gomez, Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Adriana Paz).
Depois da estreia do filme na Netflix nos Estados Unidos, percebeu-se rapidamente que a reação do público não estava a coincidir não só com a do júri de Cannes mas também com a dos críticos (o filme conta com uma pontuação bastante positiva de 71 na plataforma Metacritic e 73% de aprovação na plataforma Rotten Tomatoes). Alguns vídeos nas redes sociais começaram a comparar as sequências musicais pouco ortodoxas e peculiares do filme com as de “Wicked” que conta com uma produção mais excêntrica tanto a nível de cenários como de coreografias e estética visual. Por outro lado, a abordagem de Jacques Audiard é mais ambiciosa mas também arriscada. Os seus movimentos de câmara não são comuns e as letras das músicas e até a linguagem corporal do elenco são, muitas vezes, patéticas. A verdade é que é impossível negar a originalidade do filme, desde o conceito até à execução. Não parece surpreendente que o filme não funcione para toda a gente, mas há certamente muita dedicação e uma visão artística ao longo de todo o objeto artístico o que acabou por resultar num produto sofisticado e disrruptivo – algo que o público no geral não parece concordar (o filme tem apenas 18% de aprovação por parte das audiências no Rotten Tomatoes).
O filme já contava com dez nomeações nos Globos de Ouro, do qual saiu vencedor não só de Melhor Filme Comédia/Musical mas também de Melhor Filme Estrangeiro. No entanto, a grande surpresa surgiu no dia das nomeações aos Óscares, de onde “Emilia Pérez” saiu com treze nomeações. O filme com mais nomeações do ano, curiosamente o mesmo número do grande vencedor do ano anterior – “Oppenheimer“. Nesta fase haviam já outras polémicas ligadas a esta produção – a forma como o realizador optou por retratar os mexicanos, dando-lhes a habitual conotação de traficantes e criminosos.
Para os mais desatentos, o filme conta a história de Manitas, o líder de um cartel que pretende mudar de sexo e desaparecer por completo do universo do crime organizado. Para tal, contrata a advogada Rita para o fazer desaparecer e poder passar a viver como Emilia Perez. O realizador – também ele nomeado para o Óscar de Melhor Realização – veio também mais tarde afirmar que não viu necessidade de fazer uma pesquisa sobre a cultura mexicana para fazer o filme e que a língua espanhola estava associada às comunidades dos países em desenvolvimento, desvalorizando a língua. A atriz principal Karla Sofía Gascón conseguiu a proeza de ser a primeira atriz trans a ser nomeada para o Óscar de Melhor Atriz Principal. Foi aqui que a competição se tornou mais aguerrida, não entre as atrizes mas entre as comunidades de fãs e, nesta fase, descobriu-se o pior – vários posts na plataforma X/Twitter de Karla Sofía Gascón com comentários racistas e até alguns pejorativos sobre Selena Gomez (com quem trabalhou neste filme), e George Floyd, assassinado por um polícia em 2020 levando ao movimento Black Lives Matter. Outros posts da sua autoria criticavam ainda a cerimónia dos Óscares de 2020 e como esta tinha servido apenas para enaltecer os africanos e os coreanos. Há ainda um tweet onde a atriz menciona que Hitler tinha apenas a sua opinião sobre os judeus. A atriz foi rapidamente alvo da cancel culture, apagou a sua conta no X e lançou um comunicado a pedir desculpa pelas suas ofensas. Alguns dias depois, esperava-se algum tipo de comunicado por parte da Academia de Hollywood, especialmente depois de a terem deixado de seguir na rede social Instagram. Numa entrevista mais recente, a atriz respondeu se fazia sentido renunciar à sua nomeação. Aqui, Karla reforçou o seu trabalho e desvalorizou as suas opiniões e atitudes, sublinhando que não irá renunciar à nomeação.
Apesar de algumas semelhanças, como a situação de Andrea Riseborough no ano anterior, esta é uma situação sem precedentes. Em 2025, deu-se o grande passo de nomear uma atriz trans, abrindo a porta da representação para muitas outras que estão por vir. Resta saber se Karla Sofía Gascón é digna desse mérito e se é desta forma que a Academia dos Óscares quer ser lembrada e associada a esta primeira nomeação histórica. A Netflix já retirou a atriz de toda a campanha que está a fazer pelo filme e não cobrirá qualquer despesa que a protagonista de “Emilia Pérez” possa ter.
O seu trabalho nesta longa-metragem é notável. Foi também um ano excelente no que toca a performances femininas e muitas atrizes ficaram de fora das escolhas da Academia, como Angelina Jolie em “Maria”, Nicole Kidman em “Babygirl” e Marianne Jean-Baptiste em “Hard Truths”. Qualquer uma delas podia substituir a protagonista de “Emilia Perez”, caso a Academia anulasse a sua nomeação. No entanto, a Academia também tem o poder do voto e Karla Sofía Gascón não sairá premiada, certamente. Muito provavelmente nem estará presente na cerimónia. Também não se prevê que volte a protagonizar um filme. Os seus comentários são inaceitáveis e é de lamentar que a imagem de um filme – que já não era boa – fique associada a este comportamento. É certo que nada de positivo para o filme resulta desta polémica e talvez esta longa-metragem, que chegou a ser dada como uma das favoritas, já nem o seja em nenhuma das treze categorias.
A cerimónia de 2 de março talvez contribua para a forma como “Emilia Pérez” será relembrado, mas são as atitudes que sempre prevalecem e a questão de separar a Arte do autor será eterna.