Cabeças de um lineup onde figuram não menos que quatro vencedores da palma de ouro, Cronenberg e Park Chan-Wook apresentam seus novos filmes com sabor à vintage: o cerebral e falastrão “Crimes of the Future” e o romance com toques de thriller “Decision to Leave”.
Despachamos logo o que interessa: as estrelas maiores da edição 2022 de Cannes, David Cronenberg e Park Chan-Wook, não elevaram a barra da competição como era esperado.
Park Chan-Wook foi talvez o filme mais concorrido do festival, com uma fila que ultrapassava um quarteirão inteiro em frente ao Palais. O old boy trouxe à Croisette o seu novo Decision to Leave, a história (romântica?) de um detetive que se envolve afetivamente com a mulher suspeita de um crime que está investigar. É um Chan-Wook como nunca vimos antes, mais estilizado do que nunca, com seus movimentos de câmara exibicionistas que já faz parte da sua assinatura. Mas uma vez ultrapassadas estas distrações, resta um argumento oco e banal, e uma tentativa, meio que falhada, de fundir géneros – romance, noir, thriller mas que nunca chega a revelar realmente o seu propósito.
Já Cronenberg, que retorna à competição de Cannes depois que o seu controverso Crash causou verdadeiro furor aqui em 1996, trouxe o muito aguardado Crimes of the Future. Um interessante retorno ao universo do body horror, um tema que não só se tornou na marca principal do cinema do realizador, como até deu origem a um adjetivo, “cronenberguiano”. E Crimes of the Future é, antes de tudo, muito cronenberguiano. Tanto é que parece uma coleção best of dos mais icónicos filmes do canadiano, deixando a audiência um bocado indiferente.
Está tudo lá: o desejo e o prazer autodestrutivo de Crash, a transformação da carne de Dead Ringers, a mutação entre corpo e tecnologia de eXistenZ… O facto de que o filme foi escrito há vinte anos, também explica alguma coisa do seu gosto requentado, pois os horrores do mundo de duas décadas atrás fazem pouco mais que algumas cócegas em 2022.
No mundo de Crimes of the Future, a dor foi banida e por este motivo, toda a gente está fazer cirurgias plásticas (as “desktop surgery”). Viggo Mortensen interpreta Saul Tenser, um homem com a capacidade de desenvolver novos órgãos internos e que acredita que está muito perto do próximo passo na evolução humana.
Saul e sua parceira Caprice (Léa Seydoux) são artistas performáticos: ela imprime os novos órgãos de Saul com suas tatuagens e depois os remove na frente de uma platéia ao vivo, usando um dispositivo que parece ter saído diretamente do eXistenZ, conhecido como Sark, antigamente usado para realizar autópsias.
O luso-guineense Welket Bungué interpreta um jovem policial que investiga casos envolvendo pessoas que têm capacidade para comer plástico e com quem Tenser mantém uma relação secreta.
Na coletiva de imprensa o diretor canadense disse estar muito preocupado com o fato de 80% das pessoas no planeta ingerir microplástico diariamente, tornando-os portanto parte do nosso DNA. O que talvez seja um dos comentários mais atualizados desse argumento vintage que ele escreveu há vinte anos, sugerindo que o verdadeiro horror está em um futuro onde a humanidade terá de consumir plástico como parte da sua evolução ou se tornará extinta completamente.
Nas semanas que antecedeu a estreia em Cannes, muito se falou que Crimes of the Future seria outro filme-choque no festival, com o realizador inclusive afirmando que acreditaria que as pessoas abandonassem a projeção logo nos primeiros cinco minutos de filme. Mas foi quase como se tivéssemos sido enganados: nenhum walkout de horror, mas a sensação que o veterano já não tem o entusiasmo dos seus filmes mais viscerais.