Giornate del Cinema Muto — “Cirano di Bergerac” abre paraíso da cinefilia

O famoso espadachim francês abriu o 44ª Festival de Cinema Mudo de Pordenone, chamando à cidade italiana muitos académicos, arquivistas e cinéfilos de todo o mundo, reunidos para celebrar a magia da cinefilia que acontece Teatro Verdi, sempre acompanhada por música ao vivo
"Cirano di Bergerac", de Augusto Genina e Mario Camerini Giornate del Cinema Muto "Cirano di Bergerac", de Augusto Genina e Mario Camerini Giornate del Cinema Muto
"Cirano di Bergerac", de Augusto Genina e Mario Camerini

As Giornate del Cinema Muto (que decorreram em Pordenone, de 4 a 11 de outubro) possuem uma reputação que precede este evento, também conhecido, sobretudo na
comunidade cinéfila, como o Festival de Pordenone. Todos os anos, nesta pequena cidade do Friuli, o cinema mudo proporciona aos visitantes uma espécie de pós-graduação em memória do cinema.

Não admira que seja um evento muito singular, frequentado por académicos, arquivistas e cinéfilos de todo o mundo que se reúnem para celebrar a magia que acontece no Teatro Verdi, sempre acompanhada por músicos ou orquestras que devolvem alma aos filmes e às múltiplas curiosidades ali projectadas.

Este ano, na sua 44ª edição, o festival, dirigido há uma década por Jay Weissberg (ex-crítico da Variety), apresenta uma vasta seleção de novos restauros, muitos em formatos pioneiros, celebrando cineastas lendários e proporcionando viagens inesquecíveis pela história do cinema.

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A noite de sábado destacou essa dimensão visionária, com a celebração do magnífico restauro de “Cyrano de Bergerac” (1922-1923), clássico do cinema mudo assinado por Augusto Genina e Mario Camerini, apesar de o título original ser “Cirano di Bergerac”. Este filme, inspirado na peça de Edmond Rostand escrita em 1894 — um ano antes do nascimento do cinema —, retrata a célebre personagem do famoso espadachim, numa obra várias vezes adaptada ao cinema, sendo talvez a mais famosa a de Jean-Paul Rappeneau, de 1990, com Gérard Dépardieu.

A versão colorida, com cópia da George Eastman House, foi projectada em 35 mm e revela toda a riqueza das tonalidades originais. O acompanhamento musical, a cargo do cineasta e compositor  Kurt Kuenne, foi especialmente revisto e atualizado, ficando em perfeita união entre imagem e som. Esta é uma produção italiana da UCI, anterior à crise que afetou o cinema italiano nos anos 1920.

O filme destacou-se pelo uso de uma técnica de tintagem a três cores, de acordo com a memória do próprio Genina, numa versão nunca exibida em Itália. Filmado em cenários italianos e franceses, venceu o prémio principal no Concorso Internazionale di Cinematografia, em Turim, em 1923, com interpretação memorável de Pierre Magnier, assegurando aquele nariz emblemático, e Linda Moglia, no papel de Roxane.

Genina, considerado um dos grandes cineastas italianos do período, manteve uma fidelidade profunda ao texto original, destacando-se pela riqueza visual, sobretudo nas cenas exteriores e aglomerados de pessoas, tornando-o um dos maiores filmes do cinema mudo. Além do mais, Genina optava por mascarar o seu posicionamento político, afastando-se tanto do fascismo quanto do neorealismo pós-guerra, usando várias máscaras, mas sem que estas o escondessem. Por exemplo, embora Cyrano fosse inicialmente pensado para um formato preto e branco, Genina apoiou a versão a cores exibida em França.

O espetáculo visual ganhou ainda mais força com a excelente banda sonora, revista especialmente para esta sessão pelo próprio Kurt Kuenne, que criou uma nova alma ao filme, reforçando a união perfeita entre imagem e música.

Travelogue para o Purgatório

Pelo segundo ano consecutivo, o festival focou-se na redescoberta de várias províncias italianas através de Registos de imagens seculares: verdadeiros travelogues, filmagens amadoras de viagem e movimento, muitas delas desconhecidas, embora capturando a vida quotidiana de uma forma intemporal. Este ano, o foco foi na Ligúria, tendo Génova como capital. E foi assim que se abriu a programação.

O festival exibiu, ainda, uma série de curtas do pioneiro David Wark Griffith, de 1908, evidenciando a sua técnica apurada e o modo de produção cada vez mais refinado. Vimos, por exemplo, “The Planters’ Wife”, “Romance of a Jewess” e “The Call of the Wild”, revelando o talento narrativo de Griffith.

Por fim, foram exibidas imagens raras de “Il Purgatorio”, inspirado na obra de Dante, filmadas por Giuseppe Berardi e Arturo Busnengo em 1911. Restauros da Cineteca Friuli mostram a audácia visual e narrativa do cinema italiano de então, refletindo o elevado nível de experimentação daquele período. Arrancam em força as Giornate delCinema Muto.