O sonho é impossível onde tudo é negrume e dureza. Mesmo as paredes brancas da fábrica/matadouro podem ser lavadas do sangue, mas é sempre um branco sujo, sem espera que não seja a de ser novamente esvaído e pintado, pintado e esvaído de mais matéria, mais visco, mais sanguinidade. O sonho é impossível onde mais não há do que o engano, ou melhor dito, engano sobre engano, percentagens que se somam para subtrair, onde o pago é um abuso, onde as condições de vivência são esquálidas e miseráveis, onde as paredes são gastas e manchadas, ruínas de si mesmas, onde a luz pouca é outra vez coada por uma outra cortina conspurcada e obturadora. O sonho é impossível onde o dia começa de noite, o acordar é dorido, a movimentação é maquinada, onde todos são lançados, como linhas sonâmbulas, para autocarros de serviço, estremunhados, com músicas no ouvido, sonos a continuar, estranhos e assustados, perguntadores das razões enganadas. O sonho é impossível onde as mesmas linhas de adormecidos acordados trotam mecanicamente para lá do portão, para tomar um lugar arrependido, somente tomado por necessidade: a de ter algo mais, um pouco mais de dinheiro, porque já não se pode sonhar, só acalentar, que um dia se possa, sim, sonhar que se pode sonhar em ter uma vida mais digna, tanto onde se está como de onde se veio, ou nesse outro lugar onde se possa querer ficar e ser, ou no lugar outro para onde se espera voltar, para também nele ser.
As (des)economias da modernidade contemporânea não as toma a estatística, não as enquadram os discursos políticos, nem as percepções erradas de uma aparente auto-pertença – porque complacente – ao entorno e ao nível das economias de mercado ditas mais desenvolvidas. Pois quanto mais se considera que a elas se pertence, mais depressa se chega à conclusão que tal não é como se pensa e menos ainda como se espera que seja. Como é assim possível que para a mesma Inglaterra para onde tantos jovens – novos e esperançosos – vão para estudar terciariamente, outros, também novos e ainda (bem) mais velhos, vão para serem operários do corte da carne, matadores de animais, trabalhadores naquilo que os “recebem” não querem trabalhar? Entre a esperança dos primeiros e a desesperança dos segundos, onde se equilibra a equação? Entre a capacidade abastada de pagar a construção de um futuro (de uns poucos) ou a dívida ao banco, feita antes de se começar a vida (pelo menos para alguns) ou a conta desgastada e deficitária, sem passaporte à mão, dos trabalhadores de um matadouro? Qual é a figura que fica para se desenhar, para os que menos nela podem? Provisória, com certeza, a dos terceiros, que menos dinheiro têm, menos capital poderão vir a gerar, menos possibilidade de levantamento social possuem e menos capacidade para avanço vivencial que essa figura lhes deu e dá. O seu sonho é impossível porque não lhes é permitida a propriedade dos meios com que possam sonhar, as materialidades que lhes são negadas, às mãos de quem deles se usa e abusa.
Mas mesmo na nublada e escurecida has been city, há a vontade de querer sonhar, apesar de todas as impossibilidades elencadas. E para quem é uma agente desse mesmo regime explorador: a angariadora Tânia/Tat (Beatriz Batarda). Ela ousa sonhar fazer dos hotéis degradados onde instala miseravelmente os imigrantes portugueses verdadeiros (proper) centros de acolhimento para cidadãos seniores. Ela impele-se a sonhar, mas tem que o fazer a roubar. Não há inocência, não há lições a dar. Simplesmente (sobre)viver, enganando e enganando-se a si mesma, acreditando que tudo é possível de ser feito – esconder os mortos, sepultados no pântano que nada esconde, as suas águas são vidros baços para onde ainda se pode olhar – para proteger a ideia de um bem que ainda poderá vir a fazer. Chamada de “Mãe” por quem é por ela explorado, ela é quem vigia, controla e força quem ao mesmo tempo ela acha que acarinha, ajuda e motiva ao trabalho e à procura de um futuro mais promissor. No meio do vapor das fervuras, tudo se pode dar a ver na espessura da sua mentira e do seu engodo: não há mais ali, naquela fábrica da morte animal, do que o corte dos sonhos de uma vida melhor, antes só estão ali o “sangue e a merda” que enojam e empestam, que fazem adoecer e vomitar.
No entanto, o ousar sonhar de Tânia é um desafio – com todas suas as falhas e imoralidades – que se assoma perante a degradação, apesar dela: é um acalento igualmente degradado, escondido debaixo das tábuas, desvio atrás de desvio, fundado no medo investido sobre quem mais nada pode fazer do ser um alienado e incógnito (pois sem identidade) meio de produção do lucro dos outros, mas é um projeto, uma construção, um somar que se pretende que seja mais sobre o menos. Ainda que alquebrada pelos mesmos fumos e cheiros da fábrica, acordada cedo e repetidamente na mesma cidade deprimida e cinzenta, Tânia procura o que não lhes pode ser permitido, a ela e aos outros, os de fora, os que não são dali: a felicidade, estranho conceito e absoluto desvio numa economia de esventramento e de perda de valor.
O surgimento de Carlos (Nuno Lopes) é mais uma possibilidade positiva: de amor (?), de dádiva (?) do corpo, de troca de algo que ao menos ela quer dar (porque acalenta). Mas mesmo ele (que afinal procura o irmão desaparecido, o corpo que está debaixo das águas do pântano) a engana, fica-lhe com os “savings”, após, também ele, a usar, num irónico trocar de papéis e de poderes de influência emocional. A enganadora fez-se novamente enganada, acreditou num positivo sem alcance, que não poderia ter, embora tenha tentado vislumbrar: no bar houve a pouca cor quente que se viu neste filme, houve o cantar doce dos possíveis, houve o corpo dado. Nada foi, pois nada havia a realmente dar. Foi só um outro enganar. Quem engana o outro e se engana a si, já não sabe o que engano é, é uma forma de autoilusão.
No fim, Marco Martins deixa Tânia no terminal de autocarros, sozinha e fria, encolhida sobre si mesma, no azul gélido, para tomar a viagem de volta. Para ela, o sonho foi mesmo impossível.