Guerra e Cultura: o esplendor da sociedade do espectáculo

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Nosthalgia (1983), Tarkovsky

“o mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o espectáculo faz ver é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é assim mostrado como ele é, pois o seu movimento é idêntico ao afastamento dos homens entre si e em relação ao produto global”. Guy Debord, A Sociedade do Espectáculo

É num mundo de imagens que assistimos ao espectáculo da invasão de um país a outro e da declarada Guerra, note-se que espectáculo e espectacular servem, aqui e doravante, para exprimir a sociedade de debilidade espiritual e cultural em que estamos emergidos. Daí decorre um outro espectáculo que deve ser mantido, o espectáculo da cultura e do cancelamento cultural de um país.

Irritados com a aura espectacular dos acontecimentos, que nós europeus ocidentais não vivemos e nem sabemos olhar, a sociedade do espectáculo tem garantido ser a nossa guardiã do sono, pois ainda que irritados, nada desperta em nós um estado de fúria vigilante. É o problema da nossa apatia deprimente, que faz com que a nossa irritação alcance tão somente um botão e até uma dádiva esporádica. Tais gestos de irritação somente valem, na medida em que aparecem, pois, decorrentes deste espectáculo em que vivemos globalmente, esses gestos tornam-se reflexos da positividade do monopólio da aparência que diz que “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. Tal justifica que, enquanto o dia tiver horas, somos inundados com gestos e imagens de gestos (de apoio e desapoio) que mais não fazem do que objectivar uma visão do mundo unificada. Esta visão do mundo, que se objectiva, representa a unidade de uns, em detrimento da separação dos demais, isto é, a manifestação que sustenta, entre outros gestos, o da cultura do cancelamento, é sinónimo da linguagem oficial da separação generalizada.

Enquanto actividade especializada, a sociedade do espectáculo (leia-se: o produto da cultura e da arte mercantilizadas) constitui aquilo que a ordem presente quer manter vigente consigo mesma num monólogo elogioso. Os rasgados elogios e a eleição de heróis de uma nação e da sua cultura acontecem, não por reconhecimento real e efectivo da sua força criadora e de resistência, mas enquanto inscrição necessária da afirmação de oposição à nação invasora. O mesmo é dizer que, em função de preferirmos aqueles que colocamos à frente em nome da manutenção do elogio, não hesitamos em banir os outros que possam desordenar tal discurso representativo da ordem espectacular. Quem não cancelar a Rússia, será banido por não aderir à cultura do cancelamento, e tal não deriva de uma reflexão cultural, pelo contrário, é antes uma imposição mercantil e economicista (dizem que as sanções económicas são as que doem mais, não há dor maior do que um mundo ocidental impedido de assistir à filmografia de Andrei Tarkovsky).

No fundo, o espectáculo que acontece e, para o qual todos contribuímos engolidos pela engrenagem, é, ao mesmo tempo, projecto e resultado do modo de produção existente (e aqui sim podemos dizer que sancionar modos de produção é inflingir dor a sério). Quer isto dizer que, na afirmação omnipresente da escolha sobre quem é banido ou cancelado culturalmente, a escolha na verdade já foi feita na produção e no consumo colorário do espectáculo. Não há aqui escolhas ou afirmações genuinamente revolucionárias em prol da cultura, há tão unicamente o espectáculo que submete os indivíduos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente.

Assim, um outro olhar sobre o desaparecimento russo, para dar exemplos: da Biennale de Veneza e mais tarde o Festival de Cannes, a Netflix, a Disney, ou até e com alguma hesitação inicial a EFA (European Film Academy), faz-nos saber que nada se distingue. Não há real distinção entre o mercado da cultura e as escolhas dos agentes e das instituições, uma vez que todos servem e são servidos pelo mesmo propósito económico.

Estamos continuamente a cair no paradoxo: banimos quem não cancela, e quem não cancela, não quer, justamente, banir. Para não cair neste paradoxo, cedemos à imagem de que se deve estabelecer a afirmação do boicote, por forma a deixar clara uma posição, cedendo, essencialmente, à pseudonovidade da cultura do espectáculo. Trata-se de um fenómemo efémero e sem possibilidade de duração, esta e toda e qualquer afirmação que se dá pela adesão à aparência da novidade. Aparência é precisamente aquilo que as imagens espectaculares da guerra nos dão: a aparência do acontecimento, e não a possibilidade de pensamento sobre o acontecimento em si.

O que a apologia do espectáculo mais não faz, enquanto a novidade servir o mercado, é o esquecimento oficial da prática histórica. O espectáculo consiste apenas na mercadoria que o espectador consome. E exemplo disso são as tentativas, por parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, em escolher o seu próprio conteúdo espectacular de premiação do Cinema. É o esplendor daquele cuja comunicação é unilateral, pois só quem administra a comunicação é que detém o poder de a difundir, e a nada disto importa a visão cinematográfica de que um filme é um acontecimento a várias mãos, e de que não existem filmagens mais ou menos importantes entre si.

A debilidade espiritual que a sociedade do espectáculo acarreta é que não há experiência estética, há o marketing do espectáculo (no sentido em que visa o entretenimento das massas). Os indivíduos constituem, em simultâneo, a força de trabalho da produção, e são também eles os consumidores dos objectos de produção, objectos esses que são alvo e fundamento das imagens da sociedade do espectáculo. É tudo tão demasiadamente circular, que ficamos com a sensação ad infinitum de captura, não sendo, portanto, de estranhar o anel interminável da cultura do cancelamento.

Os indivíduos espectadores do espectáculo que reina no mundo, sem saber olhar, optam por carregar no botão que dita, positivamente, os que devem ter acesso às condições de cultura, e os que não devem. Esses mesmos, através do seu categórico cancelamento, anulam a possibilidade de criação cultural (tantas vezes oriunda do caos) que, no limite, poderia ser potência de experiência estética. A experiência que, por ser estética (e nesse sentido existencialista, política e humanizadora), é tão urgente e dela estamos tão ávidos, a fim da libertação e de evitarmos no futuro imagens de guerra como as de hoje. Há aqui um ciclo interminável, mais uma vez, enquanto o espectáculo traduzir, ele mesmo, uma cultura de alienação (da realidade, veja-se que não podemos assistir aos canais televisivos russos, e da contemplação), tal irá contribuir para a perpetuação da alienação-maior do indivíduo com a sociedade e, em última análise, das sociedades entre si. O contrário da possibilidade de revolução, que seria a consciência do desejo e o desejo da consciência, é a sociedade do espectáculo, na qual “a mercadoria se contempla a si mesma num mundo que ela criou” (Guy Debord).

É, por conseguinte, um cancelamento que leva a um outro cancelamento maior, e, de banimento em banimento, há algo que nós europeus ocidentalizados, qualificados e altamente especializados, podemos adicionar à nossa lista de skills: sermos experts no exercício individualizado da expulsão, o que mantém o espectáculo vivo (e a lucrar).

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