Permita-me o leitor que utilize desta feita uma linguagem mais pessoal. Quando me confrontaram com a perspetiva de escrever sobre os conceitos de cinema e revolução, o primeiro sentimento que me assaltou foi “O que percebo eu de revolução? O que me atrevo a dizer eu sobre a nossa revolução? Bom, no mínimo, de cinema percebo, modéstia à parte.”
Não passei ao lado da comicidade da sugestão. O que pode alguém nascido no ano de Portugal na CEE dizer sobre um outro Portugal em ditadura? O que pode alguém que cresceu sob o estigma de um Futebol Clube do Porto campeão europeu – aquele calcanhar de Madjer! – ajuizar sobre um golpe militar ocorrido doze anos antes da sua chegada ao mundo? Depois de ponderar sobre o assunto, julgo ter duas ou três coisas a dizer.
Primeiro ponto: devo a este golpe militar a minha existência;
Ponto número dois: devo a esta revolução a possibilidade que tive em ver muitos filmes e ter estudado cinema.
Terceiro e último: devo ao 25 de Abril de 1974 este artigo que vos deixo.
Sabe-se que a memória é acima de tudo composta por imagens e, desde que a imagem- movimento se tornou possível, a memória ficou mais longa. É de imagens e sons agrupados que vos falo, pois é através destes que tenho a possibilidade de opinar.
Desde que o Cinema ganhou visibilidade no seio das massas generalizadas, os órgãos políticos – particularmente os partidos/ governos – viram-no como uma forma de propaganda. A história comprova-o através de diferentes exemplos, uns mais flagrantes do que outros – veja-se o caso comunista na Rússia e o caso nazi na Alemanha – e nem por este aspeto mais prático deixaram de gravar nomes reconhecidos na história, como Serguei Eisenstein e Leni Riefenstahl, respetivamente.
No entanto, como qualquer dispositivo com um poder de vasto alcance, a utilização do cinema para proveito pessoal, ou ideais, tem duas pontas e o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro. Desta forma, as diferentes resistências espalhadas pelo mundo puderam manipular as imagens a seu respeito, estar mais ao corrente do que o “inimigo” projetava e – de uma forma clandestina – produzir os seus próprios documentos.
Como arte direcionada às massas – relembre-se de que à altura não tinha surgido ainda o fenómeno VHS nem DVD – o cinema movia as mesmas, numa sociedade onde o acesso à informação era muito limitada.
Mas centremo-nos num ponto de vista artístico e da produção cinematográfica. Como pôde o 25 de Abril influenciado a criação em Portugal? O que trouxe de novo e como é que essa novidade se desenrolou ao longo de quarenta anos?
É certo que no tempo da ditadura a produção cinematográfica foi continua, predominante no género da comédia e das crónicas de costumes que se tornaram clássicos ainda hoje vistos. Mesmo limitando o acesso à produção a cineastas como Manoel de Oliveira ou censurando outros como Manuel Guimarães, a produção era massiva, embora populista, leve, com um único objectivo, meio-acéfalo e politicamente orientado. Sem dúvida alguma que muitos cineastas permaneceram na sombra de um regime em que a liberdade de expressão – quanto mais criativa – era perseguida e se viram à margem de uma representação de si próprio em possíveis filmografias. No entanto, e volvidos quarenta anos, o acesso à possibilidade de fazer um filme é, no mínimo, utópica. Todos os cinemas novos espalhados um pouco por todo o mundo foram fruto de uma revolta, de um romper com o estabelecido, com o status quo reinante na arte, na cultura e no cinema. Os seus diversos representantes surgiam naturalmente como a personificação de uma revolução estilística e política, quer seja no cinema em si ou na sociedade em geral – veja-se Godard, por exemplo. Em Portugal, o seu cinema novo pós-25 de Abril surgiu – evidentemente – derivado pela queda do regime fascista e uma maior abertura ao mundo exterior, mas na sua maior parte pelo movimento das oligarquias que entretanto se manifestavam, que permitiram a cineastas como Fernando Lopes, João César Monteiro, entre outros, independentemente da sua voz interior própria, fazerem-se vistos, quer pelas suas permanências no estrangeiro – em Londres, para estudar – quer seja ao nível prático do financiamento e angariações para a concretização dos seus filmes e mais que provável divulgação do seu trabalho.
Em 2014, estas oligarquias ainda subsistem, assistindo-se a uma repetição de filmes, com os mesmos nomes nos genéricos, no mínimo desde há 20 anos. Num país que se diz democrático, trata-se de um organismo público, do estado, quem decide quem, como e quando se produz. A produção independente é fugaz, e quando acontece é implacavelmente posta de parte, perseguida e renegada. Num país democrático como Portugal, pós-25 de Abril, o método mais direto de conseguir chegar a termos com o projeto do filme que tenhamos é através de co produções com entidades de países estrangeiros, lamentavelmente mais avançados artística e culturalmente – para não dizer cinematograficamente – do que nós.
Volto a perguntar: o que pode alguém como eu, que vos escreve, dizer sobre cinema e revolução em Portugal?
Julgo agora ter a resposta: ambos ainda estão para chegar.