Indielisboa tornou-se ao longo das suas sensíveis duas semanas de 17.ª edição num símbolo de aproximação da tão carenciada “normalidade”. Porém, o símbolo foi apenas isso, um símbolo, visto que o festival decorreu sob os limites e exigências da DGS, desde as salas com lotação interdita até aos protocolos de salvaguarda dos espectadores. Mesmo assim, nada impediu que a resistência fizesse sentir, das festas sob a assinatura do Indielisboa e do “rebento” de Indiejunior até aos convívios de “velhos” cinéfilos concretizados, antes, entre e depois das sessões ou até mesmo nos ciclos tidos na esplanada das Cinemateca como forma de manter viva a alma cinematográfica em tempos de pandemia.
E essa tal resistência não se fez apenas no ato de existir. Os filmes falaram, cada um por si, sobre as nossas contemporaneidades e a forma como lidamos com o legado e histórias mal prescritas. Aqui, reunimos palavras-chaves que parecem ter acompanhado a programação que teimou em realizar-se mesmo quando o cinema soava escasso na indústria atual, mas independentemente versátil.
La Noire de … (Ousmane Sembene, 1966)
Um dos grandes destaques da 17ª edição foi a retrospetiva integral do cineasta e escritor senegalês que certo dia pegou numa câmara para poder comunicar com os seus conterrâneos. Desse ato nasceu todo um cinema rico em linguagens e com preocupação além daquelas imprimidas no Primeiro Mundo. Em “La Noire de …” seguimos uma apropriação que se camufla com os resquícios do colonialismo a partir do momento em que uma jovem senegalesa é convidada a trabalhar na Riviera Francesa. Inicialmente entusiasmada com a hipótese, segundo ela, de “trabalhar com os brancos”, a experiência transforma-se radicalmente num fantasma da propriedade humana. A jovem torna-se prisioneira dos seus patrões, “incentivada” a servir em todas as suas necessidades. Sembene constrói um filme com base em memórias que ditarão os sentimentos vividos no fingido cativeiro, uma epifania a um estatuto de poder nunca perdido. Neste caso não interessa o individualismo da trama, porque a nossa “noire” (negra) assume o corpo e a vontade no coletivo, ela representa todas as mulheres em idênticas situações e vivências. Uma obra-prima de um dos intelectuais mais esquecidos da nossa História branca.
Secção: Retrospetiva Ousmane Sembene
“Rizi” (Tsai Ming-liang, 2020)
Dentro do mercado de cinema de autor, Tsai Ming-liang é um apogeu do tempo enquanto barro a ser moldado. Em “Rizi” (“Days”), apresentado na Competição do último Festival de Berlim, é uma obra que apela à paciência do espectador como o seu grande cúmplice, repescando os gestos quotidianos como elementos de impasse para um (re)encontro terno e sentido. Depois da subsistência de “Cães Errantes”, o malaio a operar em Taiwan “abocanha” a solidão como base do seu cinema e como fio condutor da nossa sensibilidade. Somos ligados a isso e através disso mesmo é que “Rizi” funciona como um fascinante e desafiante retrato da nossa atualidade. Talvez tenhamos convertidos em seres cada vez mais impacientes para apreciarmos a sinfonia do “slow cinema” com alma.
Secção: Silvestre
“WR: Os Mistérios do Organismo” (Dušan Makavejev, 1971)
Há quem o veja como uma negra e ácida paródia às exaltações comunistas da Cortina de Ferro, porém, “WR: Os Mistérios do Organismo” é o tipo de obra que deveria, mais que tudo, ser recuperado perante um tremendo puritanismo que nos assombra enquanto sociedade. Para existir revolução de qualquer tipo, há que acontecer a revolução sexual, nomeadamente no direito de prazer à mulher, diversas vezes reduzida a mero pin-up ideológico ou instrumento da mesma. Polémico e de estreia conturbada (alvo de várias censuras e mazelas na carreira de Makavejev) no seu tempo, “WR: Os Mistérios de Organismo” é um remix documental com a ficção saturada do mais absurdista possível, que cavalga nas vanguardas cinematográficas contemporâneas para evidenciar a sua mais que tudo mensagem.
Secção: 70 anos de Forum Berlinale
“A Metamorfose dos Pássaros” (Catarina Vasconcelos, 2020)
A primeira longa-metragem de Catarina Vasconcelos é uma carta de amor às memórias e às pessoas que nunca conhecera, mas que se encontra ligada emocionalmente. A cineasta usufrui do papel cinematográfico para resgatar e assim reconstituir a sua avó e consequencialmente a sua mãe, um relato de famílias onde a ficção e o documental estão de mãos dadas pelo estandarte da criação. Em “A Metamorfose dos Pássaros” há um cuidado especial pela estética de cada plano, como todos estes frames fossem pinturas a ser pinceladas e emolduradas para uma galeria memorial. É um dos filmes portugueses mais virtuosos e belos, novamente frisando a nossa aptidão em manusear o nosso intimismo em prol das demandas fílmicas.
Secção: Competição Nacional
“28½” de Adriano Mendes (2020)
Em 2014, Adriano Mendes estreava na secção Novíssimos um pequeno e genuíno filme chamado “O Primeiro Verão”. Realizador, argumentista, protagonista, editor de som, um trabalho hercúleo que resumiu numa experiência estival de paixões e afetos tecidos pela atriz Anabela Caetano. Seis anos depois, regressa ao Indielisboa com uma segunda longa-metragem, mais madura e isento do positivismo jovial. Em “28½”, Anabela Caetano não é mais a doce razão de sorrir de Adriano Mendes, é antes disso uma jovem no limiar da sua juventude, tendo resistir às adversidades do qual nunca esteve preparada. Um filme na porta da maturidade, um ensaio de defraudações cujo sorriso é uma mera miragem. O mundo é impiedoso, bem nós sabemos, e Adriano Mendes parece saborear isso mesmo, essa crueldade silenciosa.
Secção Especial
“Um Animal Amarelo” (Felipe Bragança, 2020)
O colonialismos, as suas cicatrizes e “vícios”, se destacaram como uns dos temas essenciais da programação do 17º Indielisboa, e que forma de sintetizar essa mesma seleção do que encerrar com o título “Um Animal Amarelo”, coprodução luso-brasileira de Felipe Bragança. O enredo segue um patético aspirante a cineasta acompanhado pelo fémur dos seus antepassados e de uma maldição em forma dum animal peludo e … amarelo, que parte do Brasil para Moçambique na esperança de encontrar riquezas, perdendo em desventuras e um punhado de acasos. Ditado como uma fábula moral, “Um Animal Amarelo” presta-se como um despertar para novas consciências e inseri-las em novas narrativas sem as de ativismo propagandista ou evidente. É uma piada mirabolante sobre o privilégio branco, até porque está na altura de encarar isso como tal.
Secção: Encerramento