Em tom de tragédia Shakespeariana mas com a dramaticidade sendo elaborada num tom lento e austero, o novo filme de João Canijo chega na competição em Berlim sob as lentes voyeurísticas da nova “darling” do cinema português (e vencedora do urso em 2016) Leonor Teles. “Viver Mal”, a segunda parte do díptico, completa e organiza a fantasmagoria Hanekiana do realizador português.
“Você sabe que um filme é bom quando metade das pessoas abandonam a sala” provocava um jornalista polaco no Twitter. O tweet era sobre as sessões de imprensa de “Mal Viver”, o filme de João Canijo que passou na noite de terça-feira na Potsdamer Platz, um dia antes da sua estreia mundial no festival, e tornou-se no assunto do dia nos corredores da Berlinale.
Lembramo-nos da última vez que testemunhamos um “walkout” desta dimensão. Foi com o belíssimo “Touch me Not” (2018), da romena Adina Pintilie e que no final acabou por levar a melhor arrecadando o urso de ouro daquele ano. Portanto pode ser que o júri de Kristen Stewart seja mais compreensivo com o filme de Canijo e que talvez possa lhe fazer alguma justiça. Dentro de uma competição como a de 2023, com a maioria dos filmes carregados de uma forte agenda com temas políticos “do momento”, o filme de João Canijo chega como uma carga fresca de energia atemporal dentro de uma das mais fracas seleções do concurso oficial da Berlinale.
Em “Mal Viver”, cinco mulheres herdam um hotel, mas lutam diariamente para estabilidade financeira do negócio e assim não caírem na bancarrota. A história se passa durante um fim de semana e acompanha a rotina de uma família formada por cinco mulheres de diferentes gerações. A matriarca Sara (Rita Blanco) que é a dona do hotel e que conta com a ajuda das filhas Piedade (Anabela Moreira) e Raquel (Cleia Almeida) na sua administração. Essa dinâmica entre elas é fortemente abalada com a chegada inesperada da neta Salomé (Madalena Pereira), que é filha de Piedade, com a qual mantém uma relação conturbada. As interações entre essas mulheres são carregadas de antigos rancores e ressentimentos, e tem como fim explorar as relações entre mães e filhas, mostrando mães incapazes de amar suas filhas, e filhas incapazes de se tornarem mães.
É definitivamente um filme difícil, complexo e o esvaziamento da sessão com os jornalistas na terça à noite pode não ser bem o termómetro correto para medir a força do filme. Num festival com quase 300 filmes no programa, é quase impossível que um filme como o de Canijo seja absorvido em toda a sua extensão dramática neste contexto de “fast food” típico de festival, onde se consomem três ou quatro filmes de uma vez num mesmo dia. “Mal Viver” é um filme que necessita de um certo comprometimento da sua audiência.
Claro que também compreende-se estas primeiras reações. Há uma distinção no modo com que as cenas são capturadas pela câmara de Leonor Teles que faz do filme talvez uma das coisas mais impenetráveis que Canijo já produziu. O olhar voyeurístico de Teles é muito eficiente na forma como transforma o hotel numa das personagens, e capturando todos aqueles dramas do lado de fora, muitas vezes à distância, meio que se justifica a sua ausência de respostas e faz de “Mal Viver” um filme oblíquo. E essa austeridade, muito nova no cinema de Canijo, que sempre foi dinâmico e ágil, aqui tanto impressiona como frustra.
Esta escolha estilística, tão em voga dentro de um certo cinema contemporâneo europeu, com os seus planos longos, silenciosos e estáticos, e personagens que saem e entram nos enquadramentos, enquanto discorrem maldades uns aos outros, é muito reminiscente da crueldade opaca de Michael Haneke, e repetida à exaustão pelos seus imitadores (Michel Franco, Déa Kulumbegashvili). Não que Canijo se junte à lista dos imitadores do realizador austríaco, longe disso, mas o dispositivo narrativo, junto ao verniz do “filme sofisticado”, que apesar de impressionar na forma como compõe os espaços e em como filma os jogos de luz, expõe um certo maneirismo e afetação.
Dito tudo isso e uma vez ultrapassada estas distrações, resta um filme auspicioso sobre laços familiares despedaçados, ou sobre a impossibilidade de amor dentro de uma família que perpetua um ciclo de mentiras e abusos que ultrapassam três gerações.
João Canijo cria assim, um labirinto de ressentimentos guardados, em tom de tragédia Shakespeariana, como se filmasse uma versão feminina de “O Rei Lear”, explorando o relacionamento complexo de mães e filhas e os efeitos destrutivos do orgulho e das traições dentro das relações familiares.
“Não existem famílias não disfuncionais”
Então no início da tarde de quinta-feira, um dia a seguir a estreia de “Mal Viver”, somos apresentados a segunda parte “Viver Mal”, que estreou na competitiva Encounters. E assim, tudo faz sentido e Canijo completa o seu épico disfuncional. Os filmes, aliás, só atingem o seu objetivo quando vistos em conjunto, não em separado.
Na segunda parte, se é que podemos estabelecer uma ordem entre os filmes, somos apresentados aos clientes do hotel, que já tínhamos sido brevemente apresentados como personagens a fazerem de “extra” no primeiro filme. As conversas que ouvíamos de fundo, e que cruzavam as histórias das mães e filhas de “Mal Viver” agora estão no centro da narrativa. É aí que entram as personagens interpretadas por Nuno Lopes, Leonor Silveira, Lia Carvalho, Beatriz Batarda, Filipa Areosa e Leonor Vasconcelos.
Toda a inacessibilidade de “Mal Viver” aqui muda de tom. “Viver Mal” é um filme mais direto e até romântico. Ainda cruel na forma como olha para os vínculos familiares mas ainda assim, mais penetrável, sendo todo dividido em capítulos. “Não existem famílias não disfuncionais” disse Canijo na coletiva de apresentação do filme, quase como uma reação à quantidade de perguntas dos jornalistas focadas na “maldade” dos personagens. O filme foi livremente inspirado em peças do dramaturgo Strindberg (“the evil soul of Strindberg” disse Canijo na coletiva) mas o realizador revelou que a gênese dos filmes surgiu porque queria contar uma história sobre ansiedade “não sei se concordo que estas personagens são más, acho que elas são apenas vítimas de ansiedade”.
As janelas indiscretas que Leonor Teles lindamente filma, aqui ganham outros contornos. A colaboração com João Canijo, pelo menos 30 anos mais velho que ela, provou-se mais que acertada. Teles, aliás, tem desenvolvido uma meteórica carreira no cinema português. Foi aqui na Berlinale em 2016 que ela ganhou o urso de ouro pelo seu curta Balada de um Batráquio e no ano passado, apareceu guiando a câmera do fabuloso “By Flávio” de Pedro Cabeleira, que estava na competição dos curtas.
Em “Viver Mal” o negrume de “Noite Escura” (2004) , o sexto filme de Canijo ecoa mais forte, ainda que num filme onde os labirintos de “Mal Viver” encontram finalmente o seu destino. No segundo filme Canijo filma o desejo dos corpos com muito mais ousadia, em cenas de sexo sensualmente coreografadas e que libertam o filme do enclausuramento opressor do primeiro filme.
Se o “Viver Mal/Mal Viver” terá a recepção que merece junto ao júri encabeçado por Kristen Stewart só saberemos no sábado à noite. De qualquer forma, os filmes de Canijo já entram para o cânone como um dos acontecimentos cinematográficos da história da Berlinale e, obviamente, do cinema contemporâneo português.