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Melanie Pereira dialoga com personagem mitológica para melhor compreender a sua condição de migrante

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Melanie Pereira/Divulgação

Para realizar a longa-metragem “As Melusinas à Margem do Rio”, que entrou em cartaz nesta quinta-feira (5) após ter vencido três prémios do DocLisboa 2023, a luso-luxemburguesa Melanie Pereira precisou de dialogar bastante com uma personagem mitológica para melhor compreender a sua própria condição de migrante.

No filme, a realizadora apresenta a lenda da Melusina, uma espécie de mulher-sereia-serpente-peixe-dragão, ao mesmo tempo em que conversa com quatro mulheres da sua geração que, assim como Melanie, nasceram e cresceram no Luxemburgo na decáda de 1990 como filhas de emigrantes de diversos países. Elas falam bem abertamente de questões de raça, classe e género, todas atreladas às suas origens.

O tema das migrações acompanha Melanie desde a sua primeira curta autobiográfica, “Aos Meus Pais” (2018), até aos seus próximos projetos que estão a ser desenvolvidos no Norte de Portugal.

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Leia abaixo a entrevista que a realizadora concedeu por email ao Cinema 7ª Arte:

Ainda são poucas as obras audiovisuais que abordam a complexidade das migrações portuguesas pelo mundo. Identifiquei-me muito com os relatos presentes em seu filme pois também sou filha de emigrantes portugueses, nasci no Brasil e hoje vivo em Lisboa há nove anos (meus pais continuaram lá). Porém, gostava de saber um pouco mais sobre como surgiu a ideia de fazer essa conexão com o mito da Melusina – acrescentando a sua perspetiva feminista do mito.

Na verdade, a Melusina faz parte do meu imaginário de infância, lembro-me de falarmos deste mito dentro da sala de aula e de ser sabido que a Melusina estava relacionada com o surgimento do Luxemburgo. No processo do filme ela aparece muito cedo porque muito cedo percebi que precisava de alguém ou alguma coisa que fizesse de intermediário entre um diálogo que eu estava a tentar estabelecer entre mim e o Luxemburgo. Um dia lembrei-me simplesmente, veio-me à cabeça esse mito, que não me lembrava bem, então fui pesquisar.

Comecei a ler o mito desde a versão mais recente, uma BD luxemburguesa, à versão mais antiga, um romance de Jean D’Arras sobre a Melusina, a sua relação com a família nobre Lusignan e a sua aparição no Luxemburgo. É no fundo um romance do século XIV que pretendeu legitimar uma descendência nobre ligada àquele território, com algo de ‘mágico’ ou ‘divino’. Claro que fiquei incomodada com estas leituras, por vários motivos: a. a versão mais recente tornou a Melusina numa personagem sem propósito, uma mulher bonita que aceita casar com o conde Siegfried e que isso possibilita ele poder ser duque do território luxemburgo. Omite, por exemplo, que na versão de D’Arras, é Melusina quem ergue das rochas o forte do Luxemburgo, com magia, e quem fica a proteger o território para todo o sempre por amor à sua pátria; b. isto de uma mulher ter amor à pátria e sacrificar-se para todo o sempre nesse sentido pareceu-me só absurdo e claramente escrito por um homem.

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Cena de ‘As Melusinas à Margem do Rio’/Divulgação

Perguntei-me, de onde é que surgiu esta personagem mitológica? Porque duvidei seriamente que o Jean D’Arras tivesse imaginação suficiente para tal mito, ainda por cima centro-europeu, numa altura em que essas questões de identidade nacional eram justificadas com tudo e nada. Descobri que a Melusina aparece ao longo dos séculos sob vários nomes, em muitos sítios do mundo – o primeiro terá sido no Iraque. A minha conclusão foi: a Melusina é uma mulher-serpente-peixe-dragão migrante, e a ironia das coisas é ela ser considerada a fundadora do Grão-Ducado do Luxemburgo. Pensei na minha mãe, nas mães migrantes, nos pais migrantes; mais do que nós filhos, até que ponto é que essas primeiras gerações de migrantes não são de facto as bases fundadoras do país Luxemburgo que conhecemos hoje. Esta ideia aplica-se tanto ao Luxemburgo, como a qualquer outro país com comunidades imigrantes que trabalham nas obras, nas limpezas, nas agriculturas, nesses trabalhos que na verdade sustentam uma sociedade – e tivemos a prova disso durante a Covid-19.

De repente, pareceu-me evidente que a Melusina ia ser esse intermediária – por um lado porque leva nela a pátria do Luxemburgo, por outro porque leva nela um passado migrante extenso; além deste ser um diálogo mais fácil com uma mulher. Depois aconteceram muitas, muitas coisas no processo. Escrevi muito para ela, pensei muito com ela. Percebi que a estava a colocar num lugar onde não queria que ela fosse colocada – usada de novo para justificar alguma coisa relacionada com o Luxemburgo, sacrificada de novo. Ela deu-me a entender isso, por mais absurdo que pareça, ela disse-me claramente que, enquanto eu tivesse raiva dentro de mim, enquanto eu a colocasse naquele sítio de intermediária, ela comigo não dialogava. E não dialogou! Ela não é intermediária, ela é uma figura que, apenas na montagem, percebi que queria o espaço dela e a história dela livre de sacrifícios. No final do filme sai-me da boca uma chave para a mão – ela deu-me a chave das portas do Luxemburgo, e disse claramente, agora tu decides o que vais fazer com ela, não sou eu. Foi intenso e complexo, mas bonito, não te sei explicar.

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Cena de ‘As Melusinas à Margem do Rio’/Divulgação

No filme, os seus pais e os pais das suas amigas/entrevistadas aparecem apenas em fotografias ou em vídeos caseiros antigos. Ou seja, não sabemos como eles se sentem hoje em dia a respeito das mesmas situações, comentadas por vocês, que os migrantes enfrentam. Você chegou a cogitar conversar com eles? Por que essa escolha de focar na sua geração?

É uma pergunta pertinente porque existem de facto entrevistas delas com os pais. Ou seja, cada uma de nós sentou-se com os nossos pais e falamos do processo de imigração de cada um/a deles. Para mim foi dar a oportunidade a estas mulheres e às famílias delas de falarem sobre esses processos, se assim o entendessem. Foi dar uma oportunidade a mim e aos meus pais de abrirmos pela primeira vez de facto um diálogo sobre isso. Foi muito duro, com os meus pais repetimos duas vezes. Com elas foi apenas uma vez. Para mim nunca houve a perspetiva que estas imagens entrassem no filme, era muito pouco provável. Porque o filme não é sobre o processo de migração dos nossos pais, mas é sobre filhas de migrantes e processo de vivência delas dentro desse contexto. As conversas com os pais é outro filme, é outra história. Mas foram filmagens muito importantes para desbloquear coisas em cada uma de nós e até nos próprios pais, foi muito intenso e interessante.

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Cena de ‘As Melusinas à Margem do Rio’/Divulgação

Em um trecho do filme, você menciona que cerca de 45% da população no Luxemburgo, incluindo os seus pais, não tem direito a voto em eleições legislativas por não terem nascido lá. Nas legislativas que ocorreram agora em Maio em Portugal, sobretudo os eleitores portugueses que moram em países como Luxemburgo e Brasil, por exemplo, contribuíram para o resultado da extrema-direita. Como você observa essa questão política relacionada ao voto dos portugueses no estrangeiro?

Esses 45% são constituídos pelas comunidades migrantes. Em 2015 houve um referendo para o direito de voto dos migrantes que já estavam há 10 anos no Luxemburgo, e esse referendo foi chumbado. Até hoje, pessoas que vivem no Luxemburgo há mais de 10, 20, 30, 40 anos, não têm direito de voto. Ou seja, desses 45%, há uma percentagem elevadíssima de pessoas que fizeram toda a sua vida no Luxemburgo sem nunca ter tido o direito a votar em legislativas – direito de qualquer cidadão que trabalhe e pague imposto num país. Isto não é integração, isto é exclusão. Mas, por exemplo, a comunidade portuguesa emigrada pode votar nas eleições portuguesas. Não sei, há aqui um glitch, não é? Não faz muito sentido isto. Estar-se mais envolvido na política de um país onde já não se vive há décadas, do que do país onde se vive há décadas. Refiro-me aqui apenas à comunidade emigrante portuguesa – uma emigração já de décadas, com a possibilidade de não-regresso em cima da mesa.

Para votar nas legislativas de um país, é preciso conhecer e experienciar a realidade desse país. Eu não me sinto muito confortável em votar nas legislativas luxemburguesas, confesso. Já não moro lá há dez anos, apesar de ir acompanhando o estado das coisas e não votar é perder a nacionalidade que eu decidi pedir, por direito, aos 18 anos – nacionalidade, que por segurança, não quero perder; além de estar em cima da mesa a possibilidade de eu regressar a qualquer altura. Mas não conseguiria estar em Portugal – ou noutro país – 10 anos ou mais sem ter o direito de poder votar nas pessoas que me vão representar no país onde eu trabalho e pago imposto como qualquer outra pessoa. Isto não é uma realidade só do Luxemburgo.

Depois temos estes ‘fenômenos’, como as nossas últimas eleições onde a comunidade emigrante portuguesa coloca o partido de extrema-direita como segunda força partidária em Portugal… eu fiquei muito triste, mas não fiquei surpreendida. A única propaganda que chegou ao estrangeiro destas eleições foi propaganda do Chega, pelos correios. Sei disto porque a minha família lá fora recebeu, em diferentes países. Não houve outro partido que o tivesse feito sem ser o de extrema-direita. As notícias que saem de cá para fora são o que molda a percepção dessa comunidade sobre Portugal, e a comunicação social está minada pela extrema-direita, por discursos sobre hiper-criminalidade, hiper-vigilância etc., como todos sabemos. Os relatos que lhes chegam de Portugal é que está tudo mal, tudo corrupto, os imigrantes a roubarem o trabalho de toda a gente, a receberem apoio do estado só porque sim. Então, pouco faz se eu também sofro dessa mesma discriminação no país para o qual emigrei, pouco faz se eu ouvi esse discurso sobre mim próprio – a questão é que, o país que eu deixei – por não ter condições dignas de vida, mas para o qual quero regressar na mesma e se chegar sequer a hora de eu regressar – está a ficar pior por causa de uma dita imigração descontrolada. O único partido que se lembrou do bom velho português emigrante foi o partido de extrema-direita, que mandou um folheto para as famílias de fora e disse ‘eu lembro-me de vocês e vou resolver o nosso país para o vosso regresso’. Mas esse regresso nem sequer está na agenda.

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Cena de ‘As Melusinas à Margem do Rio’/Divulgação

Quais mulheres profissionais do cinema/audiovisual lhe inspiram? Qual foi a última produção que você viu feita por uma mulher ou por uma pessoa não-binária que lhe emocionou?

Há muitas pessoas que me inspiram, sobretudo mulheres sim, são muitas, não saberei qual destacar. Menciono sempre três realizadoras portuguesas que me inspiram desde muito cedo e pelas quais tenho um enorme respeito: Manuela Serra, Margarida Cordeiro e Noémia Delgado. Dos filmes que vi nos últimos anos, nenhum me ficou tão presente como o “Bye Bye Tiberias” (2023), de da Lina Soualem. Foi o filme que me fez rever o sentido e o poder que o cinema pode ter. Se ainda não viram, está na hora de ver.

Quais temas você gostaria de explorar nas suas obras futuras? Está a trabalhar em novos projetos?

Eu continuo focada no tema de migrações, apesar de agora não ter a necessidade de fazer um registro tão autobiográfico. Estou a desenvolver uma segunda longa-metragem em Castro Laboreiro, sobre uma mãe e uma filha, sobre transumância, sobre emigração a salto, sobre ecologia, sobre muita coisa. Mas a emigração continua cá, sempre. Tenho um projeto a decorrer sobre o Bairro da Bouça e habitação – a questão da casa que também anda sempre presente no meu trabalho. Vou filmando o que o presente me vai trazendo para as mãos.