Assumo-me, desde já, como alguém terrivelmente enviesado em matérias relacionadas com (a) Greta Gerwig. O próprio “a” entre parêntesis expõe os meus rumos tendenciosos: é que “com a Greta Gerwig” tem um pendor demasiado familiar que poderá ser mal interpretado, mas por outro lado “com Greta Gerwig” soa-me excessivamente formal. É uma relação platónica não recíproca que recua aos seus envergonhados dias de Mumblecore. Desde então, tenho acompanhado o seu percurso, aguardando expectante a sua primeira incursão pela realização, desejo expresso por Gerwig desde precoce fase. Foi com pueril deleite que visionei “Lady Bird”, três e quatro e cinco vezes.
Foi pouco tempo após o lançamento de “Lady Bird” que Gerwig anunciava a sua intenção de adaptar o clássico “Mulherzinhas” de Louisa May Alcott. Houve quem questionasse se não seria um caso de desperdício de imaginação readaptar a referida obra, já levada ao grande ecrã por George Cukor, Gillian Armstrong e outros mais. Porém Gerwig já fermentava o desejo de realizar esta adaptação há anos, movido pelo papel cardinal da obra no seu desenvolvimento enquanto mulher. Considera a sua existência una com a do livro, tendo-o lido e relido vezes e vezes sem conta durante a infância e adolescência. Este entusiasmo tornou-a, inadvertidamente, numa estudiosa de “Mulherzinhas”, que cita passagens alegremente de olhos fechados. Seria aos trinta anos que o leria na ótica de argumentista, sentindo a necessidade imperiosa de o transformar num filme, no seu filme.
Efetivamente, a sua adaptação provou ser totalmente distinta das prévias, designadamente na sequência cronológica anacrónica constituída por analepses e prolepses, de tal maneira frequentes que não é possível asseverar qual arco narrativo corresponde ao presente, embora se reconheça uma predominância do período tardio das irmãs March. A transição entre tempos decorre suavamente, sendo anunciada, não por palavras, mas por alterações da coloração da imagem. Salta-se de um passado vibrante e lírico para um futuro mortiço e incolor. As cenas fluem entre si, editadas magistralmente. Ora contemplamos Jo (Saoirse Ronan) a escrever no seu sótão na presença de Laurie (Timothée Chalamet), ora estamos em Nova Iorque com Jo a escrever num qualquer sótão anónimo sozinha. Terei de abrir aqui novo parêntesis e alongar-me na cena da praia (figura 1.), em que o passado transita tão dolorosamente para o futuro, enquanto Jo recita George Elliot, pseudónimo de Mary Ann Evans.
«We could never have loved the earth so well if we had had no childhood in it, if it were not the earth where the same flowers come up again every spring that we used to gather with our tiny fingers (…) What novelty is worth that sweet monotony where everything is known and loved because it is known?»
Optei por manter a passagem original, não a traduzindo, para não ferir o seu intenso lirismo. Poucos momentos no cinema conseguiram capturar tão deliciosamente a candura do período diáfano que é a infância. A sensibilidade literária de George Elliot aliada às aptidões cinematográficas de Gerwig, que cuidadosamente evoca na fotografia uma leveza impressionista, resultam numa simbiose ideal. São múltiplas as cenas familiares que existem não propriamente para avançar a narrativa, mas para expressar simplesmente a tranquilidade e o conforto de um lar. A família ocupa um papel tão basilar na obra que se poderá até considerar a substituição da tradicional personagem principal única por um coletivo composto pelas quatro irmãs March. Nesse sentido, Gerwig admitiu despretensiosamente que cenas em cozinhas têm um potencial tão épico quanto cenas bélicas, opondo-se à desvalorização geral de que histórias familiares, estereotipicamente femininas, não merecem ser contadas. Já em 1928, Virginia Woolf o defendia no seu ensaio “Um Quarto Só Para Si”, onde expõe a contaminação dos valores impostos pela sociedade patriarcal na ficção. Exemplifica da seguinte forma “Este é um livro ‘importante’, assevera a crítica, porque trata da guerra. Este é um livro ‘insignificante’, porque se ocupa dos sentimentos das mulheres numa sala”. Estamos no ano de 2020 e esta forma de pensar persevera, como ilustrado pela receção do filme por determinados elementos da crítica, habitualmente do sexo masculino, que diminuíram a importância da obra pelo mote familiar que a domina.
Convém talvez clarificar que a ênfase na temática familiar centra-se especificamente na família de origem, designadamente nas irmãs e, em menor extensão, na mãe. Gerwig, quando questionada porque é que optou por um Mr. Bhaer atraente (Louis Garrel), por oposição à sua descrição física na obra e prévias adaptações cinematográficas, responde jocosamente que sentiu que se podia dar a essa liberdade, atendendo à tradição cinematográfica masculina de pôr óculos em jovens mulheres atraentes e chamá-las de “awkward” (observação particularmente sagaz, uma vez que tal adjetivo poderia caracterizar a própria realizadora). Mais seriamente, refere também que a Jo é uma personagem unanimemente adorada por várias gerações de mulheres não por causa de Bhaer, mas sim pelas suas aspirações e insaciabilidade. Simone de Beauvoir refere na sua obra autobiográfica “Memórias de uma Menina Bem-Comportada” a influência que Jo teve na sua infância e adolescência, designadamente nas suas incursões iniciais pela escrita. Os seus primeiros contos foram tentativas de imitação da heroína: se Jo escrevia, Simone tinha necessariamente de escrever também. Patti Smith, por sua vez, já partilhou a sua apreciação pela obra num ensaio, Elena Ferrante idem. Desconheço eventuais conexões entre a obra e Fiona Apple mas, encontrando-me neste momento a ouvir o seu novo álbum, constato como determinados versos poderiam ter sido escritos por Jo March, designadamente “I would beg to disagree but begging disagrees with me (…) When they say something that makes me start to simmer / That fancy wine won’t put this fire out». Jo March é incontestavelmente um ícone de rebelião feminina transgeracional, que se mantém atual até aos dias de hoje, ecoando ainda nas obras das mais variadas artistas.
Porém, Jo casa-se no fim. Esta opção de Louisa May Alcott foi sempre alvo de controvérsia e novamente o é na mais recente adaptação cinematográfica. Contudo, Gerwig subverte inteligentemente o referido desfecho ao cruzar a cena em que Jo corre para Bhaer com aquela em que discute com o editor (Tracy Letts, reconhecido fanboy de Greta Gerwig como observável na figura 2). Tal justaposição, aliada à estranheza de toda a sequência de reunião do casal, adquire um “meta-significado”. Nesse instante, na sala editorial, Jo e Louisa são uma, e o fim romântico vinga por exigência do editor. Gerwig procede, de seguida, a filmar um beijo à chuva, musicado de maneira muito particular – de repente estamos a ver um pastelão americano que termina bem – é um filme a imitar um filme. Saliente-se que também Greta teve de defender este final perante os produtores (com sucesso porque apesar de tudo estamos no século XXI), facto que a própria reconheceu e amplificou ainda mais esta dimensão “meta”, qual matriosca de experiências.
Também nas reuniões com o editor o filme distancia-se das adaptações prévias, ao demonstrar Jo a negociar pelo melhor valor monetário. Esta preocupação económica, magnificamente ilustrada na deliciosa deixa “I can’t afford to starve on praise”, traduz uma contemporaneidade que não existia nas versões anteriores. Note-se que esta frase não pertence ao livro, mas sim à própria Louisa, que a dirigiu ao (abastado desde nascença) autor Henry James após este lhe tecer críticas negativas.
A escolha de abordar matérias financeiras não deverá ser encarada como mero detalhe, sendo fulcral na compreensão da obra. Relembro a cena inicial, quando o editor aconselha Jo a casar ou a matar a sua personagem principal, caso se tratasse de uma rapariga. Tal refletia a trágica realidade que era ser mulher nesse momento da história. Casar ou morrer – a escolha fundamental. Gerwig clarifica-o na cena em que Amy (Florence Pugh) declara a Laurie que o casamento é necessariamente um compromisso económico para a Mulher, arrasando as pretensões de casamento romântico do último. Amy, a irmã classicamente detestada, readquire nesta versão, sob o argumento de Gerwig e a interpretação de Florence Pugh, uma nova dimensão. É a irmã realista, que assume como principal função a de casar bem, a fim de garantir a sobrevivência da família. A pintora que não foi, mas que também nunca poderia ter sido atendendo às circunstâncias da época, atendendo à fundamental escolha que a sua condição lhe impunha: casar ou morrer.
No fundo, “Mulherzinhas” é uma história de talento desperdiçado: da pianista que não foi, da atriz que não vingou, da pintora que não triunfou. É uma história de como no interior de todas aquelas raparigas habitava uma ânsia imensa por ser algo mais, por criar. A título de exemplo cito o clássico “Jane Eyre” de Charlote Brontë, onde a heroína declara que “ansiava um poder de visão que pudesse ultrapassar aquele limite; que pudesse atingir o mundo agitado, as cidades, e regiões plenas de vida de que ouvira falar, mas nunca vira; desejava mais experiência prática do que a que possuía (…) Quem me critica? Muitos, sem dúvida, e chamar-me-ão insatisfeita. Não era capaz de o evitar; a agitação fazia parte da minha natureza; algumas vezes chegava a transformar-se em dor…”. Era esta a ambição das irmãs, tão simples, porém absolutamente interdita desde nascença por uma sociedade patriarcal imperdoável. Jo apregoa vezes e vezes que deveria ter nascido rapaz, mas o que pretendia realmente era ter as opções de um rapaz, libertar-se da sua senda predestinada, poder ser mais do que casada ou morta. Virginia Woolf, no ensaio mencionado há pouco, declarou que as dificuldades imateriais com que a mulher escritora se depara são infinitamente maiores do que as do homem escritor: “A indiferença do mundo que Keats, Flaubert e outros homens de génio acharam tão difícil de suportar, era no caso delas não só indiferença como hostilidade. O mundo não lhes dizia, como a eles: escrevam se quiserem. Pouco me importa. O mundo dizia-lhes num tom de mofa: escrever? Para que serve a vossa escrita?” A este aspeto acresciam ainda as contingências económicas, expressas no discurso de Amy. Woolf questiona que génio e integridade teriam sido necessários para fazer frente a todos estes obstáculos, a todo um mundo formatado contra.
Louisa May Alcott conseguiu-o: uma anomalia milagrosa. Alcançou, ainda, reconhecimento em vida e póstumo; uma raridade, justificada em igual medida pelo seu talento e por uma resiliência de espírito que apenas se pode imaginar.
Obrigada, Louisa.
“I want to be great or nothing!”