Uma mixórdia de obsessão, crime e um olfato fatal. Um ser abominável desde que nasceu, um homem imoral sem identidade, um nome que teve de ser apagado da História para que a sua existência não deixasse qualquer rasto. “Bem, agora estás a fazer um filme silencioso, Ben, boa sorte!” – disse Dustin Hoffman a Ben Whishaw no seu último dia de gravações, provavelmente consciente de que o ator principal desta adaptação realizada por Tom Tykwer (2006) afinal não é o verdadeiro protagonista. Pelo menos não no seu todo.
Há quem o considere o vilão, há quem o considere uma espécie de anti-herói perverso, ainda que, depois de tudo, associar a sua personalidade a qualquer tipo de herói seja no mínimo bizarro. Jean-Baptiste Grenouille é o seu nome. Assim que nasceu, o primeiro som que emitiu condenou a sua mãe à morte por enforcamento. A ironia está logo aí. Homem sem cheiro, com um dos sentidos irracionalmente desenvolvido, não vê o mundo através dos olhos, mas através do olfato. O que pode ser considerado um dom, não passa de uma maldição quando nos referimos a Paris no sec XVIII, onde as vísceras do peixe misturam-se com o suor dos trabalhadores no meio do caos, fator esse que é destacado pelos rápidos cortes de imagem. A linha que separa a ambição da obsessão é ultrapassada quando Grenouille é hipnoticamente atraído por um cheiro extraordinariamente específico, desejando logo a seguir criar um uma fragrância própria, só sua, onde mata a beleza para a possuir. Os seus instintos primitivos levam-no a caçá-la com a destreza de um autêntico animal selvagem, talvez pior do que um, instalando o terror na sociedade.
As primeiras cenas sugerem logo uma abordagem violenta, agressividade essa característica de toda a narrativa. É essa escuridão mórbida associada às atrocidades cometidas que induzem uma dualidade entre um lado racional e um irracional, moldando a piedade de cada um em torno de um jogo psicológico que começa antes de nos apercebermos. O possível choque inicial transforma-se gradualmente em frieza, conduzindo-nos consequentemente a visualizar tudo o resto com uma “vulgaridade” incompreensível. Esta exposição é propositada. Conhecemos a sentença antes da biografia. Quem não tem contacto com a obra literária vê como Grenouille está a ser tratado antes de perceber o porquê. O desprezo é geral, a força desproporcional, o desejo de o ver condenado é revolucionário. O porquê fica no ar. A sua estrutura praticamente subnutrida ainda alimenta este jogo, colocando-o numa posição vulnerável, quase como uma vítima, perante uma multidão que não só deseja a sua morte, mas exige que, acima de tudo, esta seja a mais dolorosa e bárbara possível. Mas desde o princípio, desde o primeiro close-up- também este uma obsessão- Tykwer mostra-nos que o nariz vai desempenhar um papel sobrenatural. O que damos como garantido vai ser tratado com um valor peculiar e a personagem não é tão moralmente inocente e incorrupta como nos pode dar a crer.
Não deixa, mais uma vez, de ser irónico como um ser sem identidade quer construir uma essência que o eleve à divindade. A sua primeira grande vítima (Karoline Herfurth ) inicia o ciclo. O lado animal vence de uma forma perturbadora como se este contacto com outro ser humano tivesse sido o primeiro. Age como se tudo fosse novidade, não se apercebendo, neste crime em específico, que o está a cometer. O cabelo carrega um peso metafórico, também ele cheio de simbolismo. Um ponto constantemente referido pela crítica é a representação do patriarcado presente no método recorrido para extrair a fragrância das vítimas, fragrância essa que remete para questões sexuais, neste caso – a virgindade – reduzindo o papel feminino a um mero estereótipo de beleza. A perspetiva masculina é a que reina, o domínio é o sentimento condutor e, por essa razão, o fétiche pelo cabelo vai desempenhar um papel de excelência.
Voltando ao primeiro assassinato, tanto as técnicas utilizadas como o jogo de cores que relembram o estilo de Caravaggio, Rembrandt e Joseph Wright aludem à vivacidade presente no livro. Fisicamente, a pele e o cabelo ruivo fazem a distinção com o meio, iluminam o sentido olfativo do predador, permitindo que este extraia a fragrância na sua forma mais pura. O vermelho, normalmente associado à cor da paixão, transfere para este contexto cinematográfico um cariz maioritariamente erótico e inocente, também ele sempre acompanhado pela morte. Esta característica física que fornece a cada uma a sua individualidade é alvo da obsessão de Grenouille, que tudo faz para o ter, chegando ao ponto de se tornar num autêntico colecionador de cabelos. É um fator de atração palpável, não apenas simbólico. O ato é mais violento e mais profundo, pelo menos na sua essência, do que se pode imaginar: extrai o poder de autoexpressão, o direito de crescerem, de estas alguma vez virem a aprofundar a sua própria sexualidade. Algo que poderia ser um símbolo de revolta ou até de perigo, neste caso, não passa de uma representação da impotência, do roubo das identidades. Ao mesmo tempo, tanto o uso do close-up como o do slow motion em certas zonas específicas do corpo deixam à imaginação de cada um o cheiro que cada uma possui. Há uma intencionalidade clara em colocar a audiência na perspetiva de quem espia, dramatizando a nossa culpa no cartório.
A beleza esgota-se, a juventude também – tal como as flores quando as colhemos. A atração leva-nos a matar para preservar o aroma, às vezes a beleza temporária, e o mesmo fez Grenouille com as suas vítimas, transformando a fragilidade das rosas numa metáfora para a vulnerabilidade da Mulher. Esta referência está por toda a parte, seja nos posters, quando se torna aprendiz de Baldini (Dustin Hoffman), ou quando espia Laura (Rachel Hurd-Wood), sendo esta última uma óbvia conexão à morte, tendo em conta o contexto: a filha de Antoine (Alan Rickman) leva uma rosa branca na mão para a colocar numa campa. Não deixa espaço para dúvidas que se trata de uma premunição. No entanto, a cor não é por acaso. É um sinónimo da pureza, da inexperiência; da morte e não da paz. Nas cenas seguintes, também elas com as flores e as pétalas como ponto fulcral, encontramos uma fala, que se conectarmos com outra anterior, chegamos à chave de ouro. “Vê o que faz o Grenouille. Repara na perícia com que as maneja. A arte da maceração é deixar as flores morrer devagar, como se morressem a dormir. Têm de ser manuseadas como uma senhora. Não concorda, Druot?” Anteriormente, na companhia de Hoffman, o próprio mostra a Whishaw que “são precisas dez mil rosas para produzir uma onça de óleo essencial (…) mantém o ar a circular, ou as pétalas do fundo vão murchar (…) tem cuidado e não as estragues, devemos deixá-las ir para a morte com o odor intacto.” A imagem das flores é substituída pelas mulheres. Tal como as rosas, também existe uma fragrância que tem de ser preservada, sendo necessárias milhares de presas para atingir o objetivo final. A morte tem de ser tratada sem violência, como pétalas de flores.
A vida de Grenouille é alvo de debate, nomeadamente no que diz respeito à moralidade dos seus atos. É uma vítima de uma sociedade que sempre lhe falhou ou pratica horrores por ser intrinsecamente mau? Independentemente da resposta, é certo que “o maior perfumista que alguma vez existiu” é um homem que não compreende a humanidade, compreendendo-a -simultaneamente- de tal maneira que se torna num mártir.