«O Rei de Staten Island» – um monarca de “lata” em terra de ninguém

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Ponto de curiosidade: há uma década atrás (não com isto afirmando sobre um intuito de pena ou revisionismo), surgia entre nós um filme de gangsters ambientado na região de Staten Island, homonimicamente intitulado como tal (em terras portuguesas recebeu o título de “Não Há Crimes Perfeitos”), assinado e filmado por James DeMonaco. O realizador e argumentista iria conceber, passando alguns anos, a popular saga de terror “Purge” (“A Purga”), muito dela filmada na região, como se pode constatar pelo reparo das personagens deste “The King of Staten Island” (“O Rei de Staten Island“), emborcados de junk food e “erva”, assistindo a um dos filmes da saga com um intuito de impressionar a um grupo de raparigas que nos seus refúgios ‘pousaram’: “Isto foi filmado cá, em Staten Island!”.

Curiosamente, este “mambo jambo” de referências cine-geograficas tem algo de reflexivo com a forma como Judd Apatow (“Virgem aos 40 Anos”, “Aguenta-te aos 40!“) retrata a menos cobiçada área de Nova Iorque. Pelos vistos, muito mudou neste espaço de dez anos, do publicitado “território com mais gangsters por metro quadrado” até à prolongação “do enteado menos apreciado de Manhattan”. Pois bem, Apatow constrói através deste ,mais um, conto de “criança-adulto”, que constantemente renega a sua maturação, num gesto algo observacional ao espaço subúrbio, em ruínas e degradação sócio-económica.

O enredo pisa diversas vezes essa consanguinidade que impede o desenvolvimento regional, enquanto os “últimos” dos jovens residentes anseiam o outro lado da margem (Manhattan como o centro cultural, como é indicado pontualmente) ou esperam a prisão de vez como resultante dos seus escapismos ilícitos. É engenhoso, e ainda mais, vindo de um realizador que tem nos últimos tempos definindo uma escola de comédia grosseiras mas alicerçada ao solipsismos auto-destruidor das suas personagens (bem americanas aliás). Dele, imensos rebentos surgiram, alguns dos quais obtiveram melhor sorte, outros caindo no puro esquecimento (e em certa parte, ainda bem).

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Enquanto isso, pormenores ou não, “The King of Staten Island” é um filme à Apatow por direito, condensando as suas marcas e temas-fetichistas, assim como a sua fascinação na irreverência e torná-la parte fulcral de um certo quotidiano. Mas ao contrário de muitos dos seus trabalhos, o realizador tenta encontrar uma génese catártica aos seus medos, muitos deles materializados na sua filmografia. Ao invés do habitual loser quarentão (já sem espaço para sonhar mas que milagrosamente, em jeito de crença no “sonho americano”, adquirem a sua segunda oportunidade para estabilizar aquilo que chamam de vida corrente), temos o jovem encalhado na sua própria procrastinação que o impossibilita … simplesmente de crescer, socialmente falando.

Aqui, encenado por Pete Davidson (oriundo do universo “Saturday Night Live”), eficaz em criar uma personagem de difícil empatia (sendo esse o propositado grande desafio do filme), seguimos essa afronta à emancipação, comummente endereçado ao sufoco financeiro e à falta de oportunidades de uma sociedade ultra-capitalista e sem compaixão pelos nossos estatutos económicos. Assim, escorraçados às bordas dos ditos e sofisticados centros citadinos, deparamos com isso mesmo, americanos que sonham baixo … ou será, alto? Tendo em conta a sua perspetiva, é bem possível!

Obviamente, que para apreciarmos isto, temos que sujeitar-nos a um comboio-fantasma de um puro delongar narrativo, criando espaço (e mais espaço ainda) para as suas gags de um absurdismo normalizado ou simplesmente na corrente de um bullying perpétuo para com as suas personagens. É um objeto, pondo isto nestes prantos, que dispõe astúcia e (voilá) alguma terna emoção vinda dos esporos mais improváveis, mas para isso há que suportar a viagem, por vezes descarrilada, da degradante comédia negra que os norte-americanos estão mais que habituados nos últimos anos. E verdade seja dita, por culpa de Judd Apatow e dos seus discípulos!

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