The Dead Dont Die 2019 2 25

“Os Mortos Não Morrem”…e os Vivos Não Sobrevivem

Sempre disposto a refletir e trabalhar sobre a lógica meta-textual do cinema, no que toca aos géneros e às suas estruturas e convenções, Jim Jarmusch, neste seu “Os Mortos Não Morrem”, arquiteta um filme que: a) é um filme série B que olha para o que é o filme série B a acontecer enquanto a ser feito como filme série B; b) é um filme de terror que se sabe filme de terror porque se vai construindo, passo a passo, como um filme de terror.

A meta-fílmica jarmuschiana pressupõe aqui a percepção do filme enquanto sua imediata desconstrução e ligação com o receptor, ainda que de uma forma tão descontraída que, à partida, quase que é indelével – ainda que não o seja – pois, quando Ronnie se refere à música de Sturgill Simpson, The Dead Don’t Die, a que passa na rádio, como sendo a canção-tema do filme, é toda uma subtileza fílmico-discursiva que suspende a frase-afirmação e de um tal modo a deixá-la latente no espectador, para que depois a ela se retorne, quando novas referências são feitas ao filme-fora do filme, ou seja, o filme no qual está o filme que vivem.

Se é ao mesmo tempo a personagem Ronnie e o seu ator Adam Driver que tal afirmam – That’s the theme song – quase que é uma asserção que nos escapa, logo no início, apesar de ser da maior importância para um filme que é sobre ele mesmo e sobre os filmes a serem entendidos como tal. Essa leveza sígnica e metafórica afirma sobretudo uma aproximação positiva e bem-humorada às convenções do filme de terror de série B: efetivamente, a música foi escrita para o filme, é a sua canção-tema. E o próprio título do filme.

A profunda seriedade deste filme é exatamente essa: ter como certa a comicidade enquanto meio de comentário, não só acerca do filme em si e as suas convenções discursivas e sígnicas internas, mas também acerca da contemporaneidade sobre a qual o mesmo fala.

Se o filme de zombies é silly, é a partir do jogar com a sua silliness, que se fala a sério do cinema – como é que ele funciona e porque é que ele funciona assim? – e da ecologia em que vivemos – porque é que prosseguimos com a destruição do meio ambiente e do planeta? – fazendo dele uma obra que não se desprende das maleitas contemporâneas, ante as toma pela sátira e metáfora corrosiva.

Na sua estrutura de filme de série B, o setting da narrativa é a típica cidade do interior rural, perdida nas estradas interestaduais e entre as grandes cidades, e muito aptamente chamada de Centerville. Na sua ronda inicial, o carro- patrulha do Chefe de Polícia Cliff Robertson (Bill Murray) e do Agente Ronnie Paterson passa por todos os subespaços que constituem a vila-modelo do cinema B: a placa da vila com o seu número de habitantes, a loja de ferragens, o motel, o diner/café-restaurante, a casa funerária, o centro de detenção juvenil, e finalmente, a Main Street e a esquadra de polícia, numa montagem de planos abertos, através dos quais o carro passa languidamente, numa vila tão calma e pacata que só nela é que poderia vir a acontecer um tal apocalipse zombie.

Jarmusch filma a pura Americana, enquadra como enquadrava Douglas Sirk e John Ford, do indie vai até cinema clássico, para daí para a frente, filmar as imagens, tal como George Romero, do puro filme série B de terror: a lua gigantesca e verde, a noite clara, as mãos que surgem debaixo da terra, os zombies a saírem das suas campas e a caminharem pelo cemitério e pela rua principal, os ataques e os esventramentos dos corpos vivos, as ressurreições dos novos mortos-vivos e as decapitações.

A imagética da cultura popular e as suas citações são também duas das lógicas de construção de uma permanente matriz referencial que preenche o filme: as revistas e comics de terror e ficção científica; o cartaz do “The Thing” de John Carpenter; o porta-chaves da “Guerra das Estrelas” que Ronnie traz consigo (e cujo ator que o interpreta, Adam Driver, é também o intérprete da personagem Kylo Ren na mais recente trilogia Star Wars de que o porta-chaves é peça de merchandising); o CD de Sturgill Simpson, que contém a música titular e que é comprado exatamente como elemento singular da cultura popular (dentro do filme e só para este filme); a personagem Zelda (Tilda Swinton), a qual maneja a sua espada samurai de uma forma tão leve e precisa quanto o fazia a também letal Beatrix Kiddo (Uma Thurman) do “Kill Bill” de Quentin Tarantino e que acaba beamed-up pelo seu disco voador típico dos filmes Sci-Fi dos anos 50 e da posterior série televisiva e cinematográfica Star Trek; Bobby Wiggins (Caleb Landry Jones), o funcionário da gasolineira, é apelidado de Hobbit ou Frodo (Elijah Wood, “Senhor dos Anéis” e “O Hobbit”, de Peter Jackson) e veste uma t-shirt do filme “Nosferatu”, de F. W. Murnau; o Pontiac Le Mans que Zoe (Selena Gomez) conduz é do mesmo modelo que o conduzido pelos também hipsters do “The Night of Living Dead” de George Romero, constituindo assim um índice de entradas fílmicas que se entrecruzam numa enciclopédia cine-referencial e que assim liga este “Os Mortos Não Morrem” a uma série de filmes primordiais do cinema popular clássico e contemporâneo.

Mas a referência maior deste filme é a si mesmo, enquanto entidade ficcional ciente da sua ficção e da sua estruturação enquanto figura-obra de cultura popular. Tanto Ronnie como o seu ator Adam Driver repetem ao longo do filme que ele (o filme), is going to end badly. Na tragicómica sequência final, no cemitério, Cliff e Bill Murray perguntam o porquê desse conhecimento. Driver responde que Jim (Jarmusch) deu-lhe o guião inteiro a ler. Murray invectiva o seu argumentista/realizador, pois a ele só lhe mostrou as cenas da sua personagem Cliff. O filme-fora do filme, o filme enquanto a ser feito e o seu feitor são a derradeira referência, a do criador das referências que fazem as referências dentro do filme e para fora dele.

No fim, Cliff/Murray e Ronnie/Driver seguem para o confronto final com os zombies: espada e decapitação, corpos e terra, campas e buracos. Ao longe, o Eremita Bob (Tom Waits) – referência musical, tal como a de Iggy Pop e o seu zombie viciado em café – comenta acerca da estupidez humana: a que mata o outro e envenena a terra.

Ora, se este fosse só um silly zombie movie, seria este o comentário final? Não. O zombie movie é aqui como é a Humanidade. Letal e destruidora de si e do seu.

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