«Para Sama» – Comovente testemunho em primeira mão da guerra síria

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“Para Sama” abre de forma explosiva, literalmente. Uma bomba aterra perto da jovem Waad Al-Kateab enquanto procura abrigo na cave. Este é apenas um dos muitos momentos chocantes que nos impressionarão nos próximos 100 minutos.

Uma produção anglo-síria de 2019, o documentário biográfico “Para Sama” foi correalizado por Edward Watts e Al-Kateab, apelido fictício para manter secreta a identidade de Waad. Porquê o secretismo? Ora Waad, ao longo de cinco anos, acompanhou com a sua câmara a guerra em Alepo, na Síria, filmando desde os primeiros motins contra o regime até ao ripostar por parte do estado, que resultou na destruição maciça do centro histórico de Alepo e na perda de milhares de vidas humanas. A todo custo, Waad foi divulgando no YouTube as atrocidades a que a população era sujeita diariamente.

“Para Sama” é precisamente o resultado de centenas de horas de filmagens: uma compilação em forma de longa-metragem do que Waad, uma estudante de economia, registou com a sua câmara. Uma crónica das barbaridades infligidas pelo governo sírio aos seus cidadãos, que vai coincidir com a jornada pessoal de Waad enquanto jovem, ativista, mulher, esposa, e mãe da pequena Sama.

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O filme teve a sua estreia mundial no festival texano South by Southwest (SXSW), onde venceu o Grande Prémio do Júri e o Prémio do Público na secção reservada para documentários. “Para Sama” seguiu viagem, arrecadando honras um pouco por todo o mundo, com destaque para o L’Oeil d’Or (no Festival de Cannes) e a nomeação ao Óscar de Melhor Documentário. Por terras lusitanas, o filme encontra-se disponível na Filmin, plataforma portuguesa de cinema independente.

O que diferencia “Para Sama” de outros documentários sobre guerra é a perspetiva única de Waad. A nossa narradora não é jornalista de profissão, nem documentarista. Waad é uma jovem de vinte anos a (tentar) processar o caos que a rodeia. Adicionalmente, Waad, tal como Jessica Chastain em “00:30 A Hora Negra” (Kathryn Bigelow,  2012) oferece uma perspetiva feminina a um género de cinema tipicamente masculino.

“Para Sama” é também uma homenagem à histórica cidade de Alepo. O cinema e a cidade tantas vezes vão de mãos dadas – a Roma de Rossellini em “Roma, Cidade Aberta” (1945), a Viena de Carol Reed em “O Terceiro Homem” (1949) – mas nunca o foram de forma tão brutal como em “Para Sama”.

A montagem do filme merece destaque, pois nas mãos dos editores Chloe Lambourne e Simon McMahon as filmagens em bruto são elevadas a cinema de alto nível. A montagem consegue criar suspense à medida que as tropas do governo vão apertando o cerco a Waad e à sua família e amigos. Questionamo-nos constantemente qual será o desfecho e quem, se alguém, sobreviverá à ira de um regime sem escrúpulos.

Por mais impressionante e comovente que seja, “Para Sama” não está livre de falhas. Os seus piores momentos dão-se quando Waad abandona a sua história de luta e sobrevivência, em troca do choque e do sensacionalismo. A título de exemplo, em dada cena Waad persegue pelos corredores do hospital uma vítima às portas da morte, até conseguir um plano detalhado do seu corpo desfigurado. É um gesto intrusivo e de mau tom. Uma coisa é retratar a realidade cruel que a rodeia, outra é aproveitar-se da miséria para fazer dela um furo jornalístico.

Noutras ocasiões, o filme é escusadamente manipulativo. A banda sonora original de Nainita Desai surge em cenas angustiantes com o som de pianos tristes – um apelo descarado às lágrimas, como se as filmagens só por si de partir o coração não bastassem para nos comover. Era dispensável.

Em suma, “Para Sama” surpreende acima de tudo pela forma como um relato na primeira pessoa se transforma num filme que nunca trata de uma coisa só. “Para Sama” não é apenas uma crónica em primeira mão da crueldade da guerra, é também um tributo de mãe para filha, um pedaço de História, um alerta global para uma crise humanitária e um retrato de uma mulher dividida entre lutar pelo seu país e proteger a sua família. “Continuo a filmar”, diz Waad a dado ponto perante o terror. O resultado dessa firmeza é um documentário de visualização obrigatória.

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