Este verão um só assunto incendiou o circuito internacional de festivais: a falta de mulheres cineastas nas grandes competições. As controversas declarações de Alberto Barbera, diretor do Festival de Veneza, que se recusou a aceitar que os festivais têm um papel a desempenhar nesta batalha, resultaram num intenso coro de críticas. O Festival de San Sebastián, um dos mais ruidosos no ano passado durante a assinatura e publicação da declaração de paridade de géneros para o futuro, parece estar a salvo dos ataques, apesar de ter ficado longe de satisfazer a sua própria meta, com apenas 6 mulheres nos 20 filmes na seleção oficial. Talvez seja porque se por um lado os números não sugerem uma mudança real de atitude, o mesmo não se pode dizer em relação à seleção propriamente dita, onde estão presentes alguns trabalhos franca e abertamente focados em questões feministas.
De todos eles, talvez o mais ousado e ambicioso seja “Proxima” da francesa Alice Winocour, que transpira muito do militantismo feminista dos tempos que vivemos, sem que permita que essa “qualidade” domine por completo a obra.
“Proxima” apresenta-nos a Sarah (Eva Green), uma astronauta francesa que vive sozinha com a sua filha de 7 anos, Stella (Zélie Boulant). A relação próxima entre as duas é posta à prova quando Sarah é selecionada para uma viagem espacial e o consequente período de treino domina por completo o seu tempo e disponibilidade. Em simultâneo, o universo da equipa internacional de astronautas não deixa de refletir alguns dos preconceitos do mundo real, em particular no líder da expedição, Mike (Matt Dillan), que está longe de aceitar que uma mulher seja capaz de aguentar o mesmo tipo de treino intensivo que um homem. É neste clima de batalha permanente que Sarah se vê obrigada a ir sempre um pouco mas longe do que todos os outros, lutando contra as suas próprias limitações mas também contra as limitações do mundo que a rodeia.
O conflito carreira versus família assume-se como o grande motor desta narrativa. Para esse fim, Winocour não mostra qualquer receio em temperar a relação entre mãe e filha com algum sentimentalismo e até mesmo manipulação, com diversos momentos e toques que apelam à lágrima fácil. Temos de tudo: questões existencialistas por parte da criança; esforços absurdos e pouco credíveis para cumprir promessas; um longo monólogo sobre como lágrimas não escorrem no espaço; e até somos confrontados com a mais óbvia e banal das metáforas visuais, uma imagem de uma égua a correr protegendo o seu potro. Numa situação normal este tom seria suficiente para tornar o filme intolerável, no entanto é precisamente neste capítulo que “Proxima” destaca o seu maior trunfo: a genuinidade das presenças e química entre Eva Green e a pequena Zélia Boulant.
Eva Green revela-se com a sua melhor e mais madura performance até à data. Longe da mera figura bonita que caracteriza a sua carreira, Green mostra dotes impressionantes na representação de uma personagem aparentemente determinada e inabalável, mas que perante o sofrimento da filha se vê à mercê da sua própria fraqueza. A técnica de Eva Green é perfeita, calculada mas discreta, deambulando entre o frágil e o forte de forma sempre subtil. Factos que quando associados à autenticidade de Zélia Boulant, disfarçam muitos dos erros, ou riscos, do filme.
“Proxima” revela-se de certa forma insuficiente também no que toca às personagens masculinas, utilizando-as como meros adereços decorativos, presentes apenas para representarem os estereótipos e obstáculos do costume. Claro que não deixa de ser uma reversão dos papéis tradicionais no mínimo irónica, e até certo ponto compreensível, mas é inquestionável que o filme ganharia com um mais subtil desenvolvimento de personagens como a de Matt Dillon, que caminha de um típico conservador para um apoiante da causa de Sarah com uma casualidade caricatural.
Mas Winocour, que surgiu em cena como argumentista do brilhante “Mustang” de Demiz Gamze Erguven, e se estreou atrás das câmaras com o imponente “Augustine”, sabe bem que tudo é permitido quando se cria uma experiência suficientemente pertinente e intimista, e ninguém pode acusar “Proxima” de não ser exatamente isso, e diga-se, com grande destreza. A reação eufórica do público do Kursaal (central do Festival San Sebastián), e a Menção Honrosa em Toronto (onde estreou na semana passada) são provas contundentes do triunfo dramático que é o trabalho de Alice Winocour, um filme capaz de apelar aos desafios, sensibilidades e grandes questões do momento, sem nunca perder a sua orientação central, como história e experiência profunda e simplesmente humana.
Este fenómeno manifesta-se acima de tudo na forma como Winocour representa o mundo da exploração espacial e utiliza os espaços da ação. O habitual fetiche tecnológico que polui frequentemente este renego de filmes está totalmente ausente. O treino dos astronautas decorre na Rússia e no Cazaquistão, em instalações antiquadas e decoradas ao estilo soviético, replicando um ambiente caseiro e nostálgico, longe do tom estéril de laboratório tecnológico. As relações entre os profissionais das instalações são próximas, descomplexadas, menos preocupadas com ciência e mais focadas em experiência.
Todos estes jogos resultam num filme surpreendentemente cativante que promete tornar-se num caso sério de sucesso.