25 de Abril

Restos e resquícios: da loucura aos Blues

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«A fúria desenvolve a capacidade de interromper um estado e de fazer nascer um estado novo. Hoje em dia, a fúria cede cada vez mais o seu lugar ao estado de irritação ou de enervamento, incapaz de produzir qualquer transformação radical.»
Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço

Assistir a “Ma Rainey: A Mãe do Blues” (“Ma Rainey’s Black Bottom”, 2020) é não termos a certeza se estamos perante as “Vedações” (“Fences”, 2016) ou se nunca chegamos a sair delas. É, portanto, inconfundível a produção de Denzel Washington, e ambos os filmes coincidem também na adaptação das peças de teatro das obras de August Wilson. Assim, são os desempenhos de Viola Davis (na personagem de Ma Rainey) e de Chadwick Boseman (na personagem de Levee Green) que imprimem velocidade a uma narrativa exclusiva do diálogo e do monólogo, onde a acção se faz palavra.

A fronteira entre riso e loucura surge-nos, por demasiadas vezes, como limiar que as confunde, de tal modo que a possibilidade de existir se constitui um absurdo. Tanto é que a personagem que mais interpela e contra-argumenta o discurso apresentado por Levee é, precisamente, o “filósofo” (Glynn Turman). Ao pessimismo e radicalismo do trompetista, que não acredita na capacidade de mudança da natureza humana por falta de esperança, o pianista Toledo (Glynn Turman) contrapõe a necessidade do sentido de comum que falta à comunidade negra para reivindicar a sua igualdade de direitos. Contrastante com a música aparentemente feliz da banda de Blues, o absurdo instala-se na pele daqueles que a tocam e que a cantam, não por se sentirem felizes ou iguais ou justiçados, mas precisamente por serem aqueles cuja cor da pele lhes impede a priori de experienciarem tais condições de ser. É o mesmo absurdo de viver num conto de fadas onde a felicidade reina por absoluto e a tristeza é condenada enquanto crime, assim o satiriza o “Happy Valley Fairy Tale” dos Monty Python.

Ma Rainey entregou a sua voz aos Blues na passagem do século XIX para o século XX, e, um século mais tarde, permanecemos nos resquícios de uma sociedade que de tão positiva, enclausura-se no absurdo de viver para a felicidade, evitando o confronto a todo o custo. Na sua luta contemporânea pela igualdade de direitos, Viola Davis empresta a Ma Rainey o olhar que nos devolve a ternura do feminino a par do vazio da condição negra. Consciente de que a sociedade positiva é aquela onde não cabe o Outro nem tão pouco a alteridade, o reconhecimento do mérito da arte reduzir-se-á à necessidade de entretenimento lucrativo da comunidade branca. Uma vez mais, à semelhança dos produtores americanos do início do século XX, permanecemos na polidez da manutenção da nossa vida cosmopolita que aprecia espectáculo e alimenta desejos, sem jamais ser capaz de despir narcisismos. Quer isto dizer que quando Levee assistiu à violação em grupo da sua mãe, é desde cedo empurrado para o confronto de que vivemos no “conto de fadas” de Narciso, como tão bem compreende Grada Kilomba. Na sociedade positiva em que impera a cor branca, Narciso branco espelha-se por onde passa, não havendo margem para a construção do reflexo de outras cores. Isso retira a justiça, a liberdade e a esperança. À falta de esperança, sobra a fúria. 

A música torna-se catarse que anestesia os corações revoltados, pois todos na banda têm histórias de vida racistas e xenófobas para partilhar, ora com finais de esperança, ora com desfechos traumáticos. Acontece que, para Levee, a revolta não faz a revolução, ainda que seja condição necessária, não é condição suficiente. A sua irritação não se fez fúria e silencia-se a filosofia como quem quer matar a voz da consciência colectiva de reflexão e de transformação. É como um fluxo de raiva que não sabe para onde vai e, na ausência de diques, nada o trava até que os corpos sucumbam. Para quem não sabe o lugar de sair de si, não há medo perante a justiça nem perante os deuses, por muito que aquele jovem trompetista desafie uma espiritualidade maior. Há tão somente o vazio dos lugares desconhecidos dentro de si. Dos lugares que nunca chegam a ocupar. Em caso de injustiça, não é Deus quem se convoca, são os homens que são chamados a reescrever a História. A história de hoje é o resquício das “Memórias de Plantação”, porquanto a nossa sociedade positiva é a “sociedade do espectáculo” que assistiu à morte de George Floyd. Não tomamos o poder enquanto espectadores, não nos “emancipamos” e nem estas imagens possuem “potencial espectacular”. 

É a voz e é a palavra capazes de pronunciar e fazer-acontecer revolução, ressuscitem-se os Blues, as artes performativas, e as manifestações. A voz da revolução é também corpo. Corpos que se contrapõem e se confrontam. A dor dessa negatividade é sempre preferível à ausência de confronto. Na ausência de confronto, as palavras nunca chegam a ser ouvidas, elas perdem-se no ruído da total permissividade.

Não houve confronto em mortes cujos corpos sucumbiram, como Toledo e como Floyd. Morrer tem de ser muito mais e nós ainda não aprendemos a morrer. Aprender a morrer é viver no medo do limiar onde começa a morte. Para quem não sente tal medo, o corpo permanece inerte. O problema começa quando essa inércia é asfixiante para quem se encontra por debaixo. Se todos estamos-a-ser-para-a-morte, enquanto vivos, uns corpos estão por cima e outros estão sempre por baixo. Seja um joelho, ou uma faca surpreendida, os actos que fazem sucumbir são impossíveis de pensar e carregados de irritação e de moralismo. E sucumbir não é morrer.

Muito ou pouco aclamado pelo público, indiferentemente do oportunismo do timing para a atribuição de prémios póstumos na award season, “Ma Rainey: A Mãe do Blues” faz-nos chegar corpos que nos dão a voz. O corpo pode ser arma e o corpo pode ser munição de armas-outras. Que essas armas-outras sejam as da revolução e da resistência. Aquela resistência sob forma de poder dizer não. Essencial a saber viver e a saber morrer. Numa subtil crítica aos movimentos das vidas negras pela igualdade de direitos, compreendemos que o caminho feito desde o Blues, sucumbiu à loucura e à irritação, quem dera que alcancemos a fúria.  

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