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“Retratos Fantasma” – O cinema é para todos, todos todos

Retratos Fantasmas (2023), Kleber Mendonça Filho Retratos Fantasmas (2023), Kleber Mendonça Filho
"Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho

O mais recente filme de Kléber Mendonça Filho estreia esta quinta-feira, em simultâneo, no Brasil e em Portugal. A vida do realizador confunde-se com a vida do Recife.

Kléber Mendonça Filho não é católico mas tem o catolicismo no sangue. Basta olhar para “Retratos Fantasmas”, documentário de afectos, qual homilia kleberiana, que o realizador brasileiro quis fazer sobre o seu Recife, partindo de sua casa, sempre narrado por si, e acabando nas salas de cinema, lugar monopolizado, ali e um pouco por todo o Brasil, pelas igrejas evangélicas. Quando antes se rezava de joelhos a olhar para os filmes de Alfred Hitchcock naquela região, hoje reza-se a um Deus salvador. As mesmas cadeiras, o mesmo lugar, outro tipo de religião que tem mandado numa parte do Brasil que colocou Jair Bolsonaro no poder. Em “Retratos Fantasmas”, Kléber Mendonça Filho professa outro tipo de fé, a de um cinema em comunhão, que parece estar a desaparecer, de um hábito que era um acontecimento por si. Onde se viam mulheres mais velhas amontoadas a um domingo de Páscoa para ver “A Paixão de Cristo”, ou miúdos e graúdos que vibravam com “O Padrinho” (“O Poderoso Chefão”).

Numa altura onde o mundo perde a cabeça com os blockbusters norte-americanos, “Barbie” e “Openheimer”, carregados de milhões de euros na sua maquinaria de marketing, Kléber dá-nos a mão para não nos esquecermos do que nos prende verdadeiramente ao cinema, sem nunca nos dar uma lição do que é ser espectador, cidadão, pai, mãe, filho. “Retratos Fantasmas” é, por isso, um contra peso à resposta corpulenta da indústria norte-americana, dos autodenominados messias do cinema de sala que hão de nos resgatar das plataformas de streaming. Um respírar de alívio que volta à base e simplifica: cinema é também ser humano.

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Começamos em Pernambuco, num apartamento que foi crescendo à medida da vontade da  mãe, historiadora, que estudou o que foi feito às populações negras após o abolicionismo. Foi lá que Kléber começou a  carreira, a filmar com colegas, a mostrar – e a rodar – os seus filmes como “Som Ao Redor”. Que viu o seu irmão, arquiteto e urbanista, a desenhar uma obra digna de Oscar Niemeyer. Nesta primeira parte, vemos imagens de arquivo que se cruzam com a sua cinematografia, numa montagem minuciosa que se torna, a certa altura, divertida, apesar de falar de um lugar onde o realizador brasileiro já não habita. Sorrir de algo que não está cá. Mas é nos pormenores que brotam da casa vizinha, que Kléber nunca visitou, que o filme ganha outro corpo, quase cómico, quase amador, onde mostra o cão que nunca pára de ladrar e os gatos a deambular por arame farpado. A experiência caseira pode melhorar se conhecer os filmes de Kléber, é certo, mas para um puro leigo, também funciona. É como ser convidado a entrar numa casa de um desconhecido, sem entrevistas chatas ou planos sequência infindáveis a reconstruir um qualquer cenário.

Quando “Retratos Fantasmas” sai de casa, deixa de ser só de Kléber. É do senhor Alexandre, projecionista do São Luiz. Dos casais que vão namorar para a sala do Art Palácio. Daquele grupo espiritual, divertido e assustador que encena um espetáculo teatral de carnaval, como um ritual que nos atrai e repele ao mesmo tempo. Da senhora da bilheteira que vende bilhetes numa máquina que faz “cachim!”. Kléber presta assim homenagem a uma cidade habitada por fantasmas, de lugares que foram e já não são, onde casas estão vedadas por questões de segurança, onde o limite de altura dos prédios vai sendo ultrapassado, como se a alma do Recife tivesse ido para outro lugar qualquer. Mas Kléber fá-lo sem tristeza ou mágoa. Não dita as regras como um bom pastor. O passado está ali, nada de amarguras. Não existe ali uma ponta de moralismo, que aponta baterias ao capitalismo, o vilão que fere a construção de uma cidade. Brinca com esse esquecimento territorial, pega nas suas influências, de Agnés Varda, Manoel Oliveira ou Brian de Palma, para manipular figuras sombrias ou nos assustar com paredes mestras desabitadas e para também colocar aqueles habitantes no campo da ficção, para que se tornem eternos. Eles já estavam na vida de Kléber e na sua cinematografia, agora estarão em todos nós.

Quando vi, pela primeira vez, “Retratos Fantasmas”, em Cannes, onde teve direito a uma sessão especial, não queria acreditar que estava a ver um filme caseiro no festival mais elitista do mundo inteiro. No meio de Harrison Ford, Wes Anderson ou Martin Scorsese surgiu esta pérola inesperada. Sem CGI, sem artifícios, uma celebração. Não sei que percurso terá o filme. Nem quantos números de espectadores. Tal como Kléber, também não sou católico mas nasci numa família católica. Há coisas que ficam, ainda que cada vez mais me distancie de uma ideia de religião. Por momentos, graças a “Retratos Fantasmas”, tive fé. Não me ajoelhei, não. Não estou à espera de um Deus que há de chegar, mas de um cinema que espero que não desapareça. Senti-me em casa. Tomara o catolicismo fosse assim, tão honesto e próximo. Ainda assim, é com filmes como “Retratos Fantasmas”  que acredito que ele ainda está no meio de nós.

Retratos Fantasmas (2023), Kleber Mendonça Filho
“Retratos Fantasma” – O cinema é para todos, todos todos
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