Ozon faz copy paste de Fassbinder e troca o sexo das personagens do filme original para fazer um “filme de homens” e poder chamar de seu. Só que o faz com a dedicação de um estudante esforçado que não conseguiu realmente compreender o seu mestre.
Numa Berlinale muito atípica, com metade da imprensa habitual, fortes medidas de segurança contra Covid e salas com 50% da lotação, o filme de abertura da edição de 2022 não podia ficar de fora da lista das “estranhezas” do dia. À primeira vista, o mais desavisado pode achar que se trata de um gesto nobre, um festival como a Berlinale retornar à sua edição física com uma releitura de um dos cânones do cinema alemão, Rainer Werner Fassbinder. O diretor artístico do festival Carlo Chatrian esclarece que a escolha do filme de abertura foi um processo natural visto que Peter von Kant “tem tudo a ver com Berlim e com a história do cinema alemão”.
Para um festival que sempre abriu seu certame com filmes medianos e inofensivos, apostar numa história escancaradamente gay – com direito a sexo e nudez – e inspirada por um dos seus mais amados realizadores, parece-nos, de fato, uma atitude a se comemorar. Pois é, só que não. E o problema não é só porque François Ozon é o tipo de realizador de baixo escalão que try too hard, mas simplesmente porque não há mesmo nada aqui que justifique esta “releitura”.
Para quem ainda não viu Petra, o filme de Fassbinder contava a história de um triângulo amoroso lésbico entre uma fashion designer narcisista e solitária, Petra Von Kant, uma jovem atriz recém chegada na Alemanha e a sua assistente, a qual nunca ouvimos falar. A versão de Ozon mantém a dinâmica sexual, mas mudam-se os sexos: Petra agora é Peter (Denis Ménochet), um famoso realizador de cinema e o seu objeto do desejo, que era Karin no original (imortalizada por Hanna Schygulla que aqui retorna, em francês, como a mãe de Peter) agora dá corpo a Amir, protagonizado por Khalil Gharbi, fazendo sua estreia no cinema.
Ao fazer esta troca de género e profissão da protagonista e, assim, tentar atualizar o clássico de Fassbinder, que era exclusivamente composto de mulheres, e que tinha aquele olhar queer e decadente do alemão, Ozon parece querer fazer uma referência ao seu próprio universo e trazer o material para perto de si. Mas enquanto que Ozon quer observar a hipocrisia e a decadência da indústria da qual faz parte, o filme de Fassbinder utiliza de uma artificialidade narrativa para nos fazer enxergar através das ilusões.
Na conferência de imprensa ontem, um jornalista reclamava ao realizador que comparando o filme do alemão com a sua nova versão, tem-se a impressão que Ozon passa “às pressas” pelo material de origem. Faz sentido. Não só no sentido literal, visto que o remake tem meia hora a menos que o de Fassbinder, mas porque Ozon comporta-se como o estudante dedicado que, com as mãos a tremer, quer fazer “homenagem” à obra do seu mestre, só que sem poder realmente compreendê-la.
Não é a primeira vez que Ozon filma uma história de Fassbinder, em 2000 ele realizou a sátira burlesca Gouttes D’eau Sur Pierres Brûlantes (vencedor do Teddy Award daquele mesmo ano). Talvez um dos filmes mais divertidos dele. Lá atrás, o filme de 2000 adaptava despretensiosamente uma peça de Fassbinder, explorando de modo mais despreocupado as relações de poder entre os seus personagens. Já aqui no seu Peter Von Kant, a “homenagem” não passa de um mero decalque; do copy paste dos diálogos do original à atualização para o “filme de homens”, tudo soa sem propósito e fora de lugar.
Sendo o realizador irregular e errático que sempre foi, não é surpresa para ninguém que Ozon não saiba lidar com os temas violentos e claustrofóbicos de dependência emocional, e de solidão e vaidade que Fassbinder abordou na maioria dos seus filmes.
Ozon diz agora, assim como disse lá em 2000, que adaptou ambas as histórias “livremente”. Parece conversa de quem sabe que se meteu onde não deveria e muito provavelmente de quem sabe que teria de justificar tamanha heresia.