“Summer of Soul (…Ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada)” é o documentário surpresa que estreou em Sundance em 2021 e viria a trazer de lá o Grande Prémio do Júri e do Público.
Acaba ainda de ganhar o prémio de Melhor Documentário dos Independent Spirit Awards de 2022, para além de estar nomeado aos Óscares nessa mesma categoria e aos Grammy – ainda este ano a banda sonora será editada em vinil.
Nos Óscares, está nomeado a par de títulos como “Ascension”, “Flee – A Fuga”, “In the Same Breath” e “Procession”, embora parta com alguma desvantagem já que a Academia não tem grande apreço pelo género.
Se os dias e meses do ainda conturbado ano de 2021 trouxeram muitas dificuldades para a distribuição, produção e visionamento de filmes, na generalidade – apesar de grandes melhorias -, trouxe ao mesmo tempo uma invulgar capacidade de produzir criativamente contornando essas dificuldades.
Foi, ao mesmo tempo, um grande ano para o documentário de música, se forem recordados, só a título de exemplo, “’The Sparks Brothers”, “The Velvet Underground” ou “The Beatles: Get Back”.
Junta-se a uma lista muito prolífica que inclui muitos outros títulos para além dos mencionados, esta primeira incursão de Questlove, o baterista dos The Roots, na realização.
Da sua mente criativa nasceu aquele que muitos consideram ser um dos melhores filmes-concerto da história do género e, embora tal epíteto possa ser considerado exagerado, certo é que “Summer of Soul (…Ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada)” é um tornado cinemático em todas as suas vertentes.
Talvez o que diferencie “Summer of Soul” de outros documentários do mesmo género seja a multiplicidade da sua importância para lá do mero documentário que mostra um concerto.
É uma peça de História americana, uma peça de História que faltava encaixar no contexto da luta dos direitos civis e raciais dos finais dos anos 60, é uma descoberta quase total de imagens que foram relegadas para os baús da História porque o seu foco principal na realidade não tinha interesse para o mundo branco.
Há até um episódio muito caricato que Questlove rememora com frequência e que diz respeito à odisseia que teve de encetar para ter acesso e incluir as imagens de reportagem de rua em que um transeunte entrevistado criticava a ida do homem à lua quando no Harlem tanta gente passava por dificuldades reais.
A descrição do processo criativo de Questlove e toda a equipa que o ajudou a construir “Summer of Soul” sugere uma enorme dose de acaso e de predestinação, já que quase literalmente as 40 horas de filmagens de concerto lhe caíram no colo.
E que concerto é este? Trata-se do Festival Cultural do Harlem, que teve lugar ao longo de seis semanas no Verão de 1969, entre Junho e Agosto, filmado no Parque Mount Morris (hoje Parque Marcus Garvey) por Hal Tulchin.
Por aquele palco montado de forma a que sempre estivesse exposto à luz solar para evitar ter de se usar luz artificial nas filmagens passaram nomes lendários da música negra da época, desde o blues ao gospel, passando pelo funk ou mesmo pelos sons mais pop, ligeiros.
São interpretações inéditas e inesquecíveis de Stevie Wonder na bateria, Nina Simone a incitar as massas à revolta cultural, Sly & the Family Stone, Glady Knight & the Pips, B.B. King, Mahalia Jackson e Mavis Staples em dueto de homenagem a Martin Luther King, entre muitos outros.
As filmagens ficariam guardadas até ao presente na cave do realizador e nem mesmo quem lá esteve à época tinha imaginado o que seria reviver aquele momento histórico cerca de 50 anos depois.
Considerar este acontecimento como o Woodstock negro apenas ganha relevo porque foi assim que Hal Tulchin tentou vendê-lo quando tudo o resto já havia falhado. Mesmo assim, ninguém fez fila para comprar os direitos ou transmitir as imagens em larga escala.
Certo é que neste mesmo Verão, a alguns quilómetros de distância, Woodstock ficaria na História como o marco da luta pelos direitos civis, pelo fim da Guerra no Vietname, pela emancipação da mulher e dos negros no seio de uma sociedade profundamente dividida e segregadora.
O Festival do Harlem é o sintoma de que, afinal, havia mesmo muito para fazer e o facto de chegar hoje a ser visto e ainda ser completamente relevante, diz muito sobre aquilo que ainda não foi feito.
Em primeiro lugar, é um portentoso feito técnico filmado literalmente com o que havia disponível, incluindo o aproveitamento da luz do dia. O espectador quase nem se aperceberá, tendo em conta a qualidade do som, que poucos eram os microfones distribuídos, para além da enorme qualidade da imagem, já a cores.
Em segundo lugar, é um colossal documento de um evento único, brilhantemente recuperado e tratado de modo a contar uma história que nem sempre foi linear ou teve o mesmo sentido narrativo do início ao fim.
Esse processo de construção da linguagem e mensagem do documentário, traz a “Summer of Soul” uma alma que vive para além das dimensões mencionadas antes. É uma contenda pessoal, é um projecto criativo com voz e escolha, com a intenção de contar a história que ninguém tinha tido interesse em contar quando talvez tivesse feito toda a diferença.
Hoje em dia ainda faz, curiosamente, e a construção do documentário (mais um acaso do destino?) teve lugar não só durante as restrições pela pandemia, mas também – e mais importante – quando eclodiram nos Estados Unidos os protestos em nome de George Floyd ou Breonna Taylor, entre tantos outros nomes.
Afinal, “Summer of Soul” não vem só falar sobre o passado, o presente mostra que ainda tem toda a relevância e isso também mostra a infelicidade de certas vidas humanas ainda terem menos importância que outras.
Os acasos que circundam a sua produção juntam ao documento em si um interesse que vai para lá daquilo que está no centro do documentário e que, claro, não pode nem deve ser desvalorizado, mesmo tendo em conta que se trata de uma pequena amostra daquilo que Questlove tinha em mãos.
“Summer of Soul (…Ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada)” remete o espectador para as palavras de Gil Scott-Heron no épico tema “The Revolution Will Not Be Televised”, que nos fala de uma revolução espiritual, interior, que não é mostrada para o exterior, mas que transforma a sociedade.
É tanto uma homenagem como o lembrar do quanto os acontecimentos mudaram precisamente na altura em que decorriam os concertos do Festival Cultural do Harlem.
As palavras e os temas de Nina Simone no concerto são bem demonstrativos do quanto a luta pelos direitos dos negros se tinha modificado e extremado, sobretudo depois da morte de Martin Luther King em 1968 e os motins dessa mesma época.
A segurança do Festival era constituída, aliás, por elementos dos Panteras Negras, o que é muito significativo como sintoma dessas mudanças. O documentário escolhe precisamente essa linha narrativa, apesar de muito do seu tempo estar focado na música e nas imagens de arquivo.
No contexto de Nova Iorque, os concertos são ainda um sintoma de abertura política por parte do presidente da Câmara da altura, John Lindsay, um progressista que permitiu, para além de tudo o resto, um método de escape criativo às tensões que se acumulavam no problemático bairro do Harlem.
À parte das intenções políticas progressistas, os concertos em si, à época, pareceram a muitos um enorme piquenique, mas também uma enorme surpresa por se juntaram tantos milhares de espectadores quase exclusivamente negros num espectáculo que juntou de forma completamente gratuita nomes lendários da música global.
Descontraidamente, talvez se tenha perdido muito do seu significado na altura e durante todos os anos em que as imagens simplesmente se eclipsaram, muitos foram aqueles que colocaram em causa que os concertos tenham mesmo tido lugar ou que os próprios tenham lá estado a assistir.
Essa reacção às imagens mostradas por Questlove é uma das melhores surpresas que o documentário traz e é também a confirmação para quem lá tocou e assistiu de que foi importante e de que a sua invisibilidade acaba no momento em que se decide que ela acaba.
“Summer of Soul (…Ou, Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada)” é uma verdadeira delícia sem deixar de ser perfeitamente técnico e racional na sua vertente de recuperação física do arquivo de imagens.
Questlove consegue o feito de espantar o espectador com as imagens inéditas, mas não permite que elas deixem de ser vibrantes, provocadoras, falantes, presentes, intensas.
Nenhum dos segmentos escolhidos foi escolhido ao acaso ou sem ter alguma coisa para contar e fazer isso com um filme concerto é de uma mestria criativa ímpar, sobretudo tendo em conta que não “explica” exaustivamente tudo o que mostra.
Especialmente intensos são os momentos em que Nina Simone canta e interpela o público, mas não podem ser esquecidos, por exemplo, os momentos de consagração dos 5th Dimension, a banda que tantas vezes foi considerada não ser suficiente negra e que aqui surge com um intenso e vibrante alinhamento.
Para o espectador passa por completo o sentimento de aqueles protagonistas estarem a fazer história, há uma electricidade no ar, há coisas para dizer, muito para fazer, todo a sociedade borbulhando de mudança efervescente, nem sempre pacífica.
Há ainda o choque de identidades e idades, quando os Sly & The Family Stone sobem ao palco, a banda que divide as águas entre os mais velhos e os mais novos, com a sua sonoridade completamente nova, uma aparência a romper com os cânones clássicos, uma identidade que integra toda a gente no seu centro.
Daqui a alguns anos, é possível que ainda se esteja a analisar “Summer of Soul”, tal é a sua riqueza, e se Questlove concretizar a sua intenção de editar a versão longa, com mais horas de imagens, então haverá tema para muitos mais anos.
Há quem anseie ainda pela banda-sonora que integre todo o concerto, portanto se Questlove não abriu uma enorme caixa de Pandora não se sabe o que “Summer of Soul” será.
Esta mágica caixa de Pandora pode ser vista na plataforma de streaming da Disney e merece todos os segundos de atenção possível.