Calorosamente aplaudido na sessão de gala, mas criticado nas sessões de imprensa e no Twitter, Sean Penn não esconde as intenções do seu documentário “Superpower” co-realizado com Aaron Kaufman: “Este não é um filme imparcial porque esta não é uma guerra ambígua”
Na conferência de imprensa do filme na manhã de sábado, a moderadora da mesa, que por acaso é também uma das programadoras da competição do festival, finalizou a coletiva por dizer que este era “o mais importante filme do programa”. Um statement que à primeira vista pode parecer demasiado arriscado, tendo em conta a diplomacia do festival em justificar as suas escolhas, mas de fato ele não tem nada de surpreendente. O filme foi uma das últimas adições ao programa e desde então tornou-se num dos filmes mais mediáticos e principal foco de atenção do festival.
A estreia mundial de “Superpower”, ao contrário do que é habitual, aconteceu em simultâneo com as sessões para a imprensa. A sessão de gala foi no Verti Music Hall ao mesmo tempo que seis salas do Cinemaxx foram fechadas para os jornalistas. De acordo com a revista Variety, ao final do filme os realizadores Penn e Aaron foram aplaudidos de pé por uma plateia entusiasmada. Já do outro lado da cidade, o acolhimento foi um pouco mais frio, com alguns jornalistas no final a acusarem o filme de “frívolo” ou “propaganda”.
No entanto, as pistas do que seria “Superpower” estavam todas à vista desde sempre. Penn fez manchetes internacionais em novembro último e virou motivo de piada quando deu um dos seus Oscars ao presidente ucraniano e prometeu pegá-lo de volta só quando ele sair vitorioso da guerra. Na cerimônia de abertura na quinta, quando o presidente ucraniano fez uma aparição especial por videoconferência, com introdução feita por Penn, Zelensky finalizou o seu discurso por dizer que tinha um “superpower” numa referência direta ao documentário. Portanto, a partida já se sabia que o filme teria uma visão enviesada sobre Zelensky.
O projeto começou inicialmente com uma ideia muito diferente, a de criar um perfil sobre o líder recém-eleito da Ucrânia, um popular ator de comédia e completamente novato na política. Em novembro de 2021, Sean Penn e seu co-realizador Kaufman partem para a Ucrânia com a intenção de passar algum tempo entrevistando Zelensky. Enquanto aguardavam a entrevista, Penn e a equipa viajaram pela Ucrânia, conversando com militares, civis e soldados sobre o seu novo presidente. No dia marcado para a entrevista, a guerra explode e os realizadores resolvem mudar o foco do filme.
As críticas ao ator e ao seu documentário são de certa forma justificadas. No entanto, as coisas são um pouco mais complexas. É muito mais fácil ter uma posição cínica em relação ao filme do que tentar compreendê-lo em toda sua extensão. O filme tem vários problemas. Penn dá muito pouco espaço para informações conflitantes com a mensagem que quer passar. Por exemplo, os avanços da NATO junto ao território russo, o próprio envolvimento dos Estados Unidos na sua expansão, ou ainda quando Zelensky fora arrastado para a política interna dos Estados Unidos em 2019, quando o então presidente Trump o pressionou a buscar informações privadas sobre Biden. Estes episódios são todos mencionados brevemente pelo filme, o que gerou grande parte das críticas.
Na coletiva sobre o filme, quando perguntado se em algum momento tentou falar com Putin ou se faria um outro filme com a “versão do outro lado”, Penn foi categórico: “Não. Desde o início era muito claro para nós que não daríamos palco para as mentiras de Putin. Este não é um filme imparcial porque esta não é uma guerra ambígua”.
Portanto, sim, este é um filme enviesado e muitas vezes até um pouco condescendente com a audiência. Veja-se por exemplo o momento onde são exibidas cenas do noticiário da tv russa com fake news sobre supostos nazis ucrânianos querendo destruir a Rússia. Os realizadores acharam por bem colocar um disclaimer em maiúsculas que quase ocupa metade da tela “BULLSHIT”. Na cena a seguir, mais fake news da tv russa, mais disclaimer de Sean e Aaron: “MORE BULLSHIT”.
Dito isto, nem tudo é de se deitar fora em “Superpower” e importa dizer que também há ali um filme muito honesto, consciente das suas imperfeições mas que, de certa forma, quer fazer alguma justiça ao mundo. Claro que com um certo preço a pagar e talvez demasiado influenciado por uma história que ainda não foi completamente escrita. Para além disso, Penn certamente não é a melhor pessoa para ser o portador desta mensagem, especialmente com as várias acusações de violência e abuso a pairar no seu currículo. Mas o próprio ator admite que fazer o filme foi um longo processo de aprendizado e com a clara intenção em abrir uma porta de acesso aos americanos. “Shame on me por não saber nada sobre a história política da Ucrânia”, diz ele no começo do filme.
E nisso o documentário é muito eficaz em expor as suas limitações e, por extensão, educando uma audiência leiga sobre as raízes do conflito, como a Revolução Euromaidan de 2014, que derrubou o presidente pró-Kremlin da Ucrânia, Viktor Yanukovych, e a resposta quase imediata da Rússia em ocupar a Crimeia.
Assim sendo, fazer o filme sob o ponto de vista de um americano que quer entender e, por consequência, influenciar a geopolítica global parece crucial para compreender o projeto dos realizadores. Deste ponto de vista, o filme cumpre uma função vital em explicar de forma simples, ou se quisermos, de forma introdutória, uma guerra complexa e que ninguém sabe como e quando vai terminar.
Feito todas as contas, “Superpower” pode até ser um filme ingénuo e demasiado parcial mas, para o bem ou para o mal, está cumprindo com eficácia o seu papel de trazer uma importante discussão para o centro do debate.