A arte, sendo ela de qualquer suporte, tem o poder de evocar sensações internas, por vezes inexplicáveis, no expectador. Como quando ouvimos uma peça de Yann Tiersen e voltamos à nossa infância ou quando nos deparamos à uma pintura paisagem do século XIX que nos remete à nossa ultima viagem com nossos avós.
“Tabu”, de Miguel Gomes, remete-nos a um tempo que não vivemos e faz mais: evoca-nos um sentimento de nostalgia.
Um espectador desavisado veria o filme inteiro e não aperceber-se-ia de que trata-se de uma obra de 2012. O realizador dialoga com a memória do cinema clássico, utilizando película em preto e branco, um enquadramento 1,37 e lente 35 mm – elementos que eram usados em filmes da primeira metade do século XX. Das partes que constituem o filme, a última é narrada e sem diálogos, evidenciando a força expressiva dos filmes mudos.
O que Miguel Gomes faz é nos mostrar o potencial poético português em seu triunfo. O filme começa por nos contar a história de um explorador melancólico, infeliz pela morte de sua esposa, que acaba por suicidar-se deixando-se ser comido por um crocodilo. A princípio parece-nos sem sentido este começo, mas ao fim percebemos que ele é uma síntese do que se vai passar: uma história sobre amor e morte, solidão e memória.
O filme conta-nos a profecia: O fantasma da esposa do infeliz explorador nos diz que há ali, entre ela e o crocodilo, um “pacto inseparável, que nem a morte pode quebrar”. O crocodilo funciona como um leitmotiv ao longo do filme, assim como outros elementos que repetem-se e criam a unidade necessária para ligar os dois capítulos que seguem-se. Há também outros pormenores que criam uma atmosfera poética e homogénea do filme, como as referências constantes à Africa nos cenários do primeiro capítulo.
Neste capítulo conhecemos Pilar, mulher de meia idade, religiosa e militante de causas pacificadoras, que vive sozinha em Lisboa em frente à Aurora e Santa, sua cuidadora. Esta personagem parece conotar justamente a melancolia e passividade que o explorador do começo do filme sentia. A solidão e o silêncio das vidas de Pilar, Santa e Aurora vai ser ressaltada pelo ritmo que o realizador adota na encenação do filme.
Pilar é a espectadora da história de Aurora, assim como nós o somos. Gomes apresenta-nos Aurora com uma cena sem cortes, um grande monólogo, em que ela conta de seu vício em cartas e de um sonho que, implicitamente, explica seus sentimentos em relação a casamento e às únicas pessoas em sua vida: Pilar, Santa e sua filha, que nunca está por perto.
O 2º capítulo nos mostra a juventude de Aurora, moça herdeira de grande herança, vivendo cercada de criados na grande quinta em que vive, situada em Monte Tabu. Sua relação com os africanos é evidenciada e explica-nos muito sobre sua instável convivência com Santa.
Tudo parecia perfeito no “Paraíso” da jovem mulher, até que se vê apaixonada por um homem que não é seu marido. Seu infeliz romance com Gianluca Ventura que, por vez, trata-se de um explorador, será o gatilho dos vários eventos que irão decorrer e transformar Aurora na triste figura da senhora que conhecemos no primeiro capítulo do filme, o “Paraíso Perdido”.
O filme rejeita banda sonora e limita-se somente a música e sons diegéticos, o que faz aumentar a sensação de silêncio que o envolve. A louvável atuação de Ana Moreira, fica aqui evidente; Sem dizer uma única palavra a atriz lança expressividade à cena e juntamente com Carloto Cotta, dão vida à história narrada pelo próprio realizador.
A história de Aurora começa pelo fim e termina pelo princípio, se passa em tempos coloniais e atuais, mas conta uma história atemporal. Joga com espaço e tempo e conta uma trágica história com toques de comicidade. Ao fim do filme, só nos resta conformarmos com a profecia e lançarmos um grande aplauso ao cinema português de Miguel Gomes.
Realização: Miguel Gomes
Argumento: Miguel Gomes
Elenco: Ana Moreira, Carloto Cotta, Teresa Madruga, Isabel Muñoz Cardoso, Laura Soveral
Portugal/2012 – Drama
Sinopse: Pilarvive os seus primeiros anos de reforma a tentar endireitar o mundo e a lidar com as culpas dos outros, tarefa cada vez mais frustrante nos dias que correm. Participa em vigílias pela paz, colabora em grupos católicos de intervenção social, quer acolher em casa jovens polacas que vêm a Lisboa para participarem num encontro ecuménico Taizè, põe e tira da parede da sala um quadro muito feio que um amigo pintor lhe ofereceu para que este não se ofenda por ali não o encontrar quando lhe fizer uma visita… E inquieta-se sobretudo com a solidão da sua vizinha Aurora, uma octogenária temperamental e excêntrica, que foge para o casino se tiver dinheiro com ela, fala constantemente da filha que não parece querer vê-la, ressaca antidepressivos e desconfia que a sua criada cabo-verdiana, Santa, dirige contra ela práticas malévolas de voodoo. De Santa quase nada sabemos, é de poucas palavras, executa ordens e acha que cada um deve meter-se na sua própria vida. Frequenta aulas de alfabetização e exercita-se à noite com uma edição juvenil de Robinson Crusoe, enquanto fuma cigarros estirada no sofá da patroa. Aurora fará um misterioso pedido e as outras duas unem-se para o tentar cumprir. Quer encontrar-se com um homem, Gianluca Ventura, que até àquele momento ninguém sabia que existia. Pilar e Santa irão descobrir que este existe, mas informam-nas de que já não está bom da cabeça. Ventura tem um pacto secreto com Aurora e uma história por contar. Uma história passada há cinquenta anos, pouco antes do início da Guerra Colonial portuguesa. Começa assim: «Aurora tinha uma fazenda em África no sopé do monte Tabu…»