“The Banshees of Inisherin”: desespero e douta ignorância

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Há qualquer coisa de maravilhoso e de urgente no insólito, e Martin McDonagh sabe-o bem, desde o êxito de “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri” (“Três Cartazes à Beira da Estrada”, 2017), cujo insólito foi levado a cabo por uma mãe (Frances McDormand), sedenta de justiça, que coloca três cartazes a denunciar a incompetência judicial em encontrar a sua filha desaparecida, até ao mais recente “The Banshees of Inisherin” (“Os Espíritos de Inisherin”, 2022), cujo insólito começa no dia em que um amigo, Colm Doherty (Brendan Gleeson), a dado momento, informa o seu amigo, Pádraic Súilleabháin (Colin Farrell) que deixará de lhe comunicar e pede-lhe, que faça o mesmo. 

O insólito que caracteriza esta filmografia aparece-nos como uma capa disfarçada de humor e sátira e que, por isso mesmo, faz-nos rir perante cenas de incêndios ou de dedos cortados, contudo, a capa esconde algo de angustiante, a saber,  o desespero a que nos entregamos quando nenhuma resposta ou mecanismo racional é credível ou eficiente o suficiente, e abraçarmos aquilo que escapa à ordem moral vigente e ao sensato parece ser o único caminho perante o abismo.

Entregues aos confins do isolamento de uma ilha irlandesa (e que confere uma bela fotografia ao filme pela lente de Ben Davis), e dilacerados pelas feridas da guerra civil entre o IRA (Irish Republican Army) e o Reino Unido, dois amigos muito distintos são unidos pela conversa franca e pela partilha de uma cerveja. Por um lado, Colm é o artista mais velho, que se faz acompanhar do violino e do desejo iminente de deixar uma peça musical para a eternidade (mote para a notável banda sonora clássica do filme a cargo de Carter Burwell); por outro lado, Pádraic, um ingénuo órfão que vive com a irmã destemida e sabedora (Kerry Condon), pacatamente entregue à rotina dos dias e capaz de afirmar as suas mais reflexivas crenças quando alcoolizado.

Esta amizade estabelece a ponte e a união, tão necessárias num cenário polarizado, entre as pessoas mais insolitamente reunidas, pois aquilo que Colm possui de angustiante no seu desespero face à morte, Pádraic possui de sabedor na sua simples contemplação. Por conseguinte, uma lição obtemos deste mundo caótico: não basta o domínio do saber, do conhecimento, ou até mesmo do dom da arte, como o caso de Colm e a sua habilidade para a composição musical, no que respeita ao desespero da solidão e da finitude, somente a douta ignorância e a mestria da simplicidade pode dar-nos a possibilidade de apaziguamento e serenidade.

Confrontado com a necessidade de convencer o seu amigo Pádraic de que a amizade e toda a forma de comunicação cessaram, o insólito atinge o seu pico sob a forma de cortar dedos e atirá-los, ou seja, o gesto que Colm encontra para manifestar um grito surdo oriundo da sua revolta interior.

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Inconformado com a ausência de respostas e de explicação para o inesperado e inusitado do insólito, Pádraic possui o espírito puro daquele que, consciente da sua própria ignorância, não cessa de procurar a verdade. A humildade com que reveste todo o seu processo de busca transforma esta personagem num sábio, ao modo socrático, pois que ele sabe o valor inexorável da amizade e do afecto e jamais desiste de Colm. Devoto das relações genuínas de afectividade, Pádraic nutre as amizades com Colm e com o seu animal de estimação, uma burra, qual Guardador de Rebanhos abençoado pela metafísica bastante de não pensar em nada, ao jeito de Caeiro.

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Pelo caminho da busca de respostas, Pádraic vai adquirindo novos prismas através do olhar tolo e singelo do filho do Polícia da vila, Dominic Kearney (Barry Keoghan), personagem que, nos diálogos curtos e francos que estabelece com os irmãos Súilleabháin, tal qual o parvo vicentino, não possui malícia, antes é objecto de sofrimento atroz. 

Como dois passageiros, Colm e Pádraic, da Barca do Inferno, que aguardam viagem para o outro mundo, este drama irlandês vicentino exalta o poder do vínculo nas relações que estabelecemos em vida e que nos podem salvar do medo de ser-para-a-morte. Num mundo crescentemente habitado por «não-coisas», isto é, um mundo virtualmente digital onde os homens não precisarão de mãos, cortar os dedos é simultaneamente um atentado e é um acto de resistência corpórea.  É a mesma força de resistência que invade Pádraic e o incentiva a uma eterna vingança para com o seu amigo. Agora a amizade toma o lugar de ressentimento, todavia, no final, sabemos que, mesmo que o vínculo da amizade tenha deixado de ser corpóreo, o vínculo não desparece, pois jamais dá lugar à indiferença.

 

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