«Trilogia da Finlândia» – Onde há esperança, há vida

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Aki Kaurismäki é um realizador finlandês, considerado por muitos o mais importante daquele país escandinavo. Tem mais de 30 créditos de realização atribuídos a si, entre documentários, longas e curtas-metragens. Escreve e realiza todos os seus filmes, acumulando ainda os cargos de produtor, e menos frequentemente de editor. O seu estilo pessoal é bastante notório nos projectos, tal como na chamada “Trilogia da Finlândia”, composta por “Nuvens Passageiras” (1996), “O Homem sem Passado” (2002) e “Luzes no Crepúsculo” (2006).

O autor finlandês desenvolveu um estilo minimalista, onde é notória a influência de Robert Bresson. A câmara é, regra geral, fixa, e a duração dos planos estende-se até ao ponto de sentirmos a “pressão temporal” dos mesmos. O corte não é apresentado ao espectador como hipótese para respirar, estando ele obrigado a dirigir a sua atenção para a cena que se desenrola, o que força uma participação activa da sua parte. Outras semelhanças entre esta trilogia e os filmes do realizador francês são a maneira como o som é usado e a performance dos actores: silêncio frequente; raro uso de som extradiegético; os diálogos formais, com uma representação inexpressiva; e as falas enunciadas de uma maneira que se assemelha a uma leitura repetida por várias vezes (a técnica usada por Bresson para retirar toda a expressão possível da parte dos seus actores).

Nesta trilogia as histórias pioram até ao ponto em que assim deixa de o ser – se é redundante na oralidade, em formato escrito ainda mais, estou ciente disso. No entanto, não deixa de ser uma afirmação verdadeira. Nos três filmes a narrativa gira em torno de personagens que passam por dificuldades, surgem no seu caminho vários obstáculos e situações menos favoráveis. Contudo, as suas naturezas, aliada à ajuda dos que os rodeiam, não lhes permitem desistir. A busca por uma brecha de esperança naquilo que por vezes parece ser uma tempestade de infortúnios sem fim não cessa – “depois da tempestade vem a bonança”.

Estas obras de Aki Kaurismäki acabam por não ser exigentes de um ponto de vista intelectual. A narrativa é linear e simples, os objectivos das personagens, idem. O seu objectivo principal (dos filmes) é procurar uma conexão emocional com o espectador, um pouco à imagem do que o já mencionado Robert Bresson defendia: sentir o filme antes de o intelectualizar. No que a mim diz respeito, Kaurismäki consegue o que quer. Quem é que não gosta de uma boa história sobre um underdog, alguém que, apesar das circunstâncias desfavoráveis, consegue superá-las? Acaba por ser (praticamente) impossível não torcer pelas personagens que o autor nos apresenta.

Três filmes onde o realismo social é factor chave. É apresentada a vida de maneira crua, mas também com situações humorísticas (e não é isso que acontece no dia a dia, no quotidiano?). Certamente haverá quem ache que o realizador está a fazer troça das personagens, mas isso parece-me errado – está sim a mostrar o lado cómico que existe na vida. São os temas que conectam os filmes uns aos outros, e não uma continuação da narrativa: as personagens mudam, as histórias também, mas duas coisas permanecem nestas obras de que quero falar um pouco: a esperança face à adversidade e o facto de as personagens fumarem imenso.

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Nuvens Passageiras (1996)

Finlândia, anos 90. Um casal, Lauri (Kari Väänänen) e Ilona (Kati Outinen), enfrenta dificuldades financeiras, ainda mais agravadas quando ambos são despedidos dos respectivos empregos (ele, condutor de eléctrico, ela, chefe de mesa num restaurante) devido à recessão que afecta o país. Demasiado orgulhoso para recolher apoio da segurança social, Lauri (e Ilona por conseguinte) iniciam uma busca por novos meios de subsistência, mas acontecimentos azarados sucedem-se uns após outros, sendo a unidade deste casal posta em teste.

O principal tema a pairar nesta obra é a recessão e as dificuldades económicas que afectam a população, o que abre caminho para uma crítica à desigualdade social. Quando inicia a sua busca por novo emprego, Ilona encontra-se com um gerente de restaurante. É dito à protagonista que tem 36 anos, logo, está velha para ser empregada de mesa, pois devido à sua idade pode morrer a qualquer momento. Quando questionado por Ilona sobre a sua própria idade, visto ter pelo menos 50 anos, o gerente do restaurante responde que tem contactos, logo esse factor não se aplica à sua situação.

Dos três filmes, o título deste é aquele que mais vai de encontro à ideia central da trilogia. O dia pode ser nublado, a semana de chuva, ou o mês muito tempestuoso, no entanto, as nuvens são passageiras, e chega um ponto em que o céu se abre. Depois de todas as tentativas falhadas, não conseguindo arranjar emprego, e outras peripécias que vão sucedendo ao longo da obra, no final, Ilona e Lauri abrem o seu próprio restaurante. Inicialmente vazio, vai enchendo cada vez mais, sendo um sucesso.

A unidade do casal, que nunca desiste um do outro, e a compaixão demonstrada por todos os que trabalham no restaurante (que transitam do antigo local de trabalho de Ilona, o Dubrovnik, para o novo, o Work), são a prova que a reacção às adversidades dita o modo como o nosso futuro se desenrolará. Rainer Maria Rilke diz que “aquilo a que damos o nome de destino vem de dentro dos seres humanos, em vez de entrar neles vindo de fora”. Se assim o é, resta-nos ter esperança e enfrentar o que a vida nos reserva, do modo mais optimista e determinado possível, olhando o céu alegremente, como Ilona e Lauri fazem na cena final, numa bela alusão ao título.

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O Homem sem Passado (2002)

Um homem sem nome, referido apenas como M (Markku Peltola), chega de comboio a Helsínquia. Após adormecer num banco de jardim, é roubado e agredido violentamente por um grupo de criminosos. Deixam-no em estado crítico, ao ponto de perder a consciência. Quando acorda, cambaleia até à estação de comboios, para colapsar novamente. Acorda já no hospital, e descobre que perdeu todas as suas memórias. É dado como morto, mas de alguma maneira encontra a força para sobreviver. Vê-se obrigado a começar a sua vida do zero.

Esta é a história de um homem que se reconstrói aos poucos, forçado a criar uma nova identidade. Sorte disfarçada de infortúnio, isto porque M acaba por se tornar uma pessoa melhor do que aquela que era no passado. Talvez por sentir dentro de si a evolução moral que se operou e por estar feliz com a vida que agora leva, não mostra interesse em descobrir quem era, de onde veio ou o que fazia. M vive sem rumo, dependendo da ajuda de estranhos e do que a vida lhe apresentar – como por exemplo uma trabalhadora do Exército de Salvação (instituição caridosa), Irma (Kati Outinen), por quem se apaixona.

Senti este como o filme mais cómico dos três. Mantém o registo de humor “seco” presente nos restantes, em particular nas cenas que envolvem o polícia e o seu cão temível. A música tem um papel importante, já que se encontra presente ao longo de todo o filme, quer na jukebox que M reconstrói, quer no facto de mais tarde se tornar agente de uma banda religiosa ligada à instituição de caridade, transformando-os numa banda de rock.

Toda a obra é sobre transformação. M muda, ao mesmo tempo que o meio envolvente muda consigo. A já referida banda, a instituição de caridade, Irma e ele próprio. Não são descurados assuntos de cariz social, apresentados na primeira obra que compõe a trilogia – a crise dos anos 90 ainda se faz sentir. É visível no desemprego, na falta de habitação digna e no fecho dos pequenos negócios. A falta de condições dignas para viver acaba por ser tornada numa forma de obter lucro, neste caso pelo polícia que ilegalmente aluga contentores, para servirem de habitação a quem, de outro modo, dormiria na rua (mais uma crítica social do realizador).

É o filme mais aclamado de Kaurismäki: venceu o grande prémio do júri, o prémio de melhor actriz e a Palm Dog, para melhor actuação canina, tudo isto em Cannes, além de ter sido nomeado para a Palma de Ouro no mesmo festival e para o Óscar de melhor filme estrangeiro.

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Luzes no Crepúsculo (2006)

Koistinen (Janne Hyytiäinen) é um guarda nocturno solitário, sem amigos e sem afecto. Nem sequer no trabalho os colegas são cordiais com ele, e talvez por isso tenha ideias de começar o seu próprio negócio, se bem que são apenas ideias supérfluas, atiradas para o ar, numa tentativa de convencer os outros (bem como a si mesmo) que a sua vida vai melhorar em breve. Do nada, uma misteriosa mulher loira (Maria Järvenhelmi) enceta conversa com Koistinen, e rapidamente este se apaixona. O que ele não sabe é que está a ser usado, com vista a outros planos, por parte da mulher e do seu parceiro criminoso (Ilkka Koivula).

Facilmente o filme com visão mais pessimista dos três. Se o primeiro aborda o desemprego, o segundo o desalojamento, este trata a solidão como questão central. Foge um pouco à questão social, para se focar mais no indivíduo. Propositadamente, ou não, Aki Kaurismäki parece ter concebido os filmes por ordem decrescente de optimismo. Ainda assim, também esta obra termina com uma brecha de esperança.

“Luzes no Crepúsculo” pode muito bem ser considerado um “estudo de personagem”. Koistinen é um sujeito passivo, que aceita aquilo que a vida lhe traz. Nas únicas vezes em que assume uma posição activa e assertiva, sofre as consequências (más) de tentar introduzir alguma ordem moral no mundo. Acaba por ser importante o gesto, e não tanto o resultado – é isso que o protagonista precisa de aprender. Apesar de tudo, este homem não desiste, mesmo quando os acontecimentos vão de mal a pior.

Dois pontos particulares desta obra, situações que não acontecem nas duas anteriores: primeiro, são os olhares em direcção a Koistinen (e consequentemente em direcção à câmara). A quebra da quarta parede, aliada aos constantes silêncios, faz com que estes acabem por se tornar ruidosos, tal o ambiente de intimidação que é criado. Todos olham para o protagonista de modo acusador, reprimem-no, mesmo sem haver motivo para tal. A falta de compaixão humana é gritante nesta história, até ao último momento do filme. Num certo sentido acaba por ser o reverso de “Homem sem Passado” e de “Nuvens Passageiras”, onde a entreajuda é força motriz. Em segundo lugar, ao contrário dos dois filmes anteriores, não existe um par romântico onde o protagonista possa procurar apoio e conforto. Ele está sozinho, mas não perde a esperança de encontrar alguém (e esse alguém acaba por estar mesmo debaixo do seu nariz).

Talvez seja o que precisamos de fazer para sermos um pouco mais felizes: dar atenção ao que está debaixo do nosso nariz. Se tratarmos o que (ou quem) quer que lá esteja com a devida atenção, carinho e respeito, de certeza que não nos sentiremos tão sozinhos como Koistinen outrora se sentiu.

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