A auteur theory, quando aplicada à sétima arte, é associada maioritariamente ao papel de realizador. Estes autores são artistas a que associamos um grande controlo criativo sobre o resultado das suas obras e em quem é possível detetar temáticas recorrentes nos seus trabalhos. Pode então colocar-se a questão de se esta teoria de autor poderá ser aplicada a argumentistas.
Quando se fala em guionismo para o grande ecrã, é quase impossível não mencionar Charlie Kaufman. Os seus guiões têm consecutivamente dado origem a filmes de sucesso, onde é possível notar essa consistência temática a que os auteurs são frequentemente associados, ainda que só os guiões mais recentes sejam realizados pelo próprio Kaufman. Após dois filmes em que acumulou a escrita o papel de argumentista com a presença na cadeira de realizador (os fantásticos “Synecdoche, New York” e “Anomalisa”), Kaufman mostra que não há duas sem três e vê estrear o seu mais recente filme “Tudo Acaba Agora” (em inglês “I’m Thinking of Ending Things”), lançado na plataforma de streaming da Netflix.
Logo no princípio do filme é introduzida a personagem principal, uma jovem rapariga (interpretada por Jessie Buckley) que se encontra numa road trip com o namorado Jake (Jesse Plemons) para visitarem os pais deste, habitantes de uma zona rural. A jovem (que não será nomeada por motivos relacionados com o filme) pretende terminar a sua relação de apenas algumas semanas com o namorado, uma vontade que a sua narração vai insistindo durante larga parte dessa viagem introdutória. Numa situação normal poderia ser essa tentativa de término da relação o principal objeto de avanço da história, mas deve ser lembrado que um filme com a mão de Charlie Kaufman será sempre muito mais do que isso.
A partir do momento em que o casal chega a casa dos pais de Jake (Toni Collette e David Thewlis) parece que o filme muda um pouco o seu tom. Enquanto que a primeira viagem possuía um tom mais sério e, em certas partes, até melancólico, na quinta dos pais de Jake é criado um ambiente desconfortável e confrangedor (com muito mérito para Toni Collette e David Thewlis), e que abre depois as portas para a aura quase surreal que lhe segue e que permanece até ao final do filme. É na viagem de regresso que as conversas se vão tornando ainda mais profundas, onde o sentido de realidade (se ainda existia) se extingue quase por completo.
Torna-se difícil exprimir “Tudo Acaba Agora” em palavras, sobretudo no seu ato final. Por muito que o espectador esteja familiarizado com Charlie Kaufman, o último terço do filme não deixará de ser surpreendente. Todo o filme está impregnado de simbolismo, de uma análise da condição humana e das relações humanas, temáticas em que Kaufman já demonstrou ser o mestre. Pode até parecer estranho ao espectador que esteja familiarizado com Kaufman que este seu novo filme consista numa adaptação literária. Certo é que o cineasta apenas se serve do enredo geral e das personagens para comentar sobre temas que lhe são muito próprios. Pode também argumentar-se que “Tudo Acaba Agora” está estruturado de forma demasiado enigmática. Mas, ao contrário de outros filmes em que o puzzle possui uma única solução, “Tudo Acaba Agora” não se dá ao trabalho de dar as pistas ao espectador, pois deve ser cada um a resolver o enigma com as suas próprias vivências.
Uma das frases chave do filme é dita por Jake, após ouvir um poema escrito pela namorada. Depois de o escutar, Jake diz “É como se fosse sobre mim”, ao que a protagonista responde “É essa a intenção quando se escreve um poema”. É a arte de Kaufman para conseguir abordar a universalidade humana que o faz ser um poeta do cinema e que faz de “Tudo Acaba Agora” um verdadeiro poema, um poema em movimento.