Ontem teve estreia nacional a segunda longa-metragem de Yann Gonzalez (“Les Rencontres d’après Minuit“), “Un Coteau dans le Coeur“, e foi, sem dúvida alguma, um dos melhores filmes da competição de longas-metragens de terror europeias. Vanessa Paradis está fenomenal no papel de Anne Parèze, uma produtora e realizadora de filmes pornográficos gay, e o filme em si é toda uma celebração da arte cinematográfica e da paixão de fazer cinema. E tem ainda o delicioso acréscimo de ter sido filmado em película 35mm.
A história é simples: a sua montadora e amante, Loïs, acaba a sua longa relação com Anne. Esta última, por sua vez, tenta recuperá-la a todo o custo ao filmar o seu filme mais ambicioso. Mas, quando os seus atores começam a ser brutalmente assassinados por um homem mascarado, Anne vê-se envolvida numa estranha investigação para revelar a identidade do assassino.
Mais do que uma história sobre a paixão voraz de Anne por Loïs, o filme é uma ode ao cinema. Arrojado e feroz, lembra o cinema de Matthew Barney, Dario Argento ou David Lynch. É um filme que não tem medo de fazer uso do burlesco, dos símbolos, da forma em detrimento da palavra que insiste em tudo descodificar.
Há que tirar o chapéu a Vanessa Paradis pela sua interpretação: ao mesmo tempo feroz e frágil, voraz e submissa, e sempre com uma naturalidade e expressividade notável. Uma atriz menor talvez puxasse do overacting, técnica que, quando bem utilizada, resulta, como comprova Fritz Lang, mas que pode também facilmente destruir um filme. Paradis, no entanto, está um autêntico furacão e pouco mais se podia exigir dela.
A cinematografia, em particular, é uma lufada de ar fresco, ou melhor, de grão fresco, em relação à hegemonia do digital. Bem dizia Gonzalez durante a sessão de Q&A após o filme que nunca havia de filmar em digital e percebe-se porquê. O vermelho intenso que contrasta com um azul hipnótico à la “Mulholland Drive” reflete a ferocidade das paixões de Anne e os avanços e recuos na sua relação com Loïs. Os jogos de câmara alucinantes, como a panorâmica a alta velocidade que cria uma explosão de cores, os contrastes entre quentes e frios e os jogos de luz, dão ao filme uma magia louca que é mais do que bem-vinda.
A figura do assassino que assombra todos os planos com a sua presença, ou ausência, não é apenas um mero antagonista, é símbolo dessa dualidade terrível que reside no amor. Anne precisa de Loïs e tudo fará para a reconquistar, mas quanto mais tenta, mais mortes ocorrem. Por vezes, o símbolo do corvo cego que acompanha o assassino pode parecer um pouco patético, mas o amor é mesmo assim: um prenúncio patético de morte.
O caráter ritualista dos filmes pornográficos gay que Anne realiza é mais uma pincelada arrojada de Gonzalez neste festim de cor que é “Un Coteau dans le Coeur” e é espelho da sua forma de fazer e pensar o cinema. A cena final durante os créditos é por si só reflexo desse ritual que é fazer cinema, particularmente em película. É toda uma orgia dionisíaca, muito literalmente, com o seu quê de caprino e uma ausência completa de pudor.
Este foi, inquestionavelmente, um dos melhores filmes que vi este ano e é raro ver um que junte tão bem todas as peças para montar uma obra tão apaixonada como esta.