Veneza 2023: Hamaguchi impressiona com o enigmático “Evil Does Not Exist”

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Com um filme menos ambicioso e mais experimental que o anterior “Drive My Car”, o japonês Ryūsuke Hamaguchi surpreende a todos com o seu fabuloso “Evil Does Not Exist”. Uma entrada inesperada na competição estelar da 80.ª edição de Veneza, que traz os temas filosóficos recorrentes na filmografia do realizador, só que desta vez com um final chocante.

Ryūsuke Hamaguchi sempre foi um cineasta otimista que fez filmes discretos e intimistas. Mas esse universo delicado e seguro, de onde parecia que o próprio realizador habitava, passou por uma reviravolta significativa após o estrondoso sucesso de “Drive My Car”.

O filme de três horas era uma meditação sobre o luto e sobre a necessidade de conexão humana. O filme teve um enorme sucesso, que começou desde a sua estreia mundial na competição de Cannes em 2021, onde ganhou três prêmios, incluindo Melhor Argumento, culminando na cerimónia do Oscar no ano seguinte, onde foi nomeado para Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Filme Internacional. Acabou por levar nessa última e conseguiu a proeza de empatar com “Ran”, de Akira Kurosawa, como o filme japonês mais nomeado na história do Oscar.

Apesar da aclamação e dos holofotes da fama, Hamaguchi sempre manteve uma discrição notável. Nas entrevistas que deu enquanto divulgava o filme, o realizador sempre pareceu muito introspectivo, até um bocado tímido, e nunca escondeu o seu embaraço por não falar muito bem inglês (recordamos quando esteve entre o júri internacional da Berlinale em 2022 e era o único a precisar de um tradutor). Portanto, não foi com muita surpresa que o próximo projeto do realizador japonês chegasse na forma de um filme menos ambicioso, e que muitos estão chamando equivocadamente de um “filme menor”.

Que não nos enganemos, Evil Does Not Exist pode até ser um filme mais discreto em termos de produção e orçamento, especialmente se comparado ao “blockbuster” que foi “Drive My Car”. Mas ele é tão poderoso e impactante quanto o filme anterior, e dá um grande salto no escopo dos temas frequentes do realizador. Nos primeiros 20 minutos de filme, Hamaguchi constrói habilmente todo um espectro de sensações e paisagens sónicas, sempre acompanhado pela música hipnótica de Eiko Ishibashi, e que tem como objetivo narrar a ruptura de um equilíbrio natural harmonioso causada pela intervenção humana.

O novo filme do japonês junta-se a um outro grande título de 2023, “The Zone of Interest” do inglês Jonathan Glazer, como uma das experiências sensoriais mais poderosas do ano. Assim como o filme de Glazer, que se desenvolvia quase como uma performance em simetria com a música aterradora de Mica Levi, Hamaguchi começou por desenvolver o novo filme como uma série de imagens para uma performance de Ishibashi. “O projeto começou quando Eiko me pediu para criar algumas filmagens para sua performance “Gift”. Eu concebi o filme como uma fonte de material para essa performance, mas à medida que fui ficando cada vez mais conectado a aquelas imagens, eu percebi que tinha um filme ali. E Eiko colaborou muito para a elaboração final do projeto. Essa forma tão livre de fazer cinema me revitalizou muito. Após a filmagem, senti que havia capturado as interações das pessoas na natureza e concluído o trabalho como um único filme inspirado pela bela música tema de Eiko.”

A história de “Evil Does Not Exist” gira em torno de uma pequena vila agrícola japonesa, há 1 hora de Tokyo, onde a vida se desenrola harmoniosamente na mesma velocidade que os ritmos da natureza. Seguimos o viúvo Takumi (Hitoshi Omika), e sua filha única de 8 anos Hana (Ryuji Kosaka), que frequentemente é esquecida na escola pelo pai, forçando-a a retornar para casa a pé.

Na parte inicial do filme, com pouquíssimos diálogos, testemunhamos Takumi cuidando diligentemente de suas tarefas diárias em cenas longas e cheia de detalhes: ele cuida dos animais, corta lenha para o estoque da semana e coleta pacientemente a água cristalina dos riachos que são a força vital de abastecimento da vila. Esta fonte de água tem um significado imenso para todos os residentes da aldeia e especialmente para o único restaurante de noodles da região, que depende da água doce que Takumi coleta.

Estas cenas longas e minuciosas são fundamentais para nos ajudar a compreender o significado da cadeia de eventos que acontece logo a seguir e que abala toda a estrutura da vida pacata desses moradores. Uma empresa de Tóquio chamada Playmode adquiriu um grande terreno localizado na aldeia e está a avançar rapidamente com planos para construir um local de glamping para turistas ricos.

É então que os habitantes da aldeia tomam conhecimento de um plano para construir uma espécie de resort na aldeia, oferecendo aos moradores da cidade grande a oportunidade de uma “experiência luxuosa” na natureza. Numa longa sequência que é um dos pontos altos do filme, dois representantes da empresa chegam à aldeia para realizar uma reunião com os moradores, uma vez que torna-se claro que o projeto terá um impacto negativo no abastecimento de água local.

O filme tem sido chamado por muitos de uma “parábola ecológica anti-capitalista”, mas na conferência de imprensa realizada na segunda-feira em Veneza, o realizador rapidamente dissipou as expectativas de que tivesse criado um filme de denúncia e encerrou a questão: “Muitas pessoas têm-me questionado sobre a abordagem ambiental presente no filme, mas não me sinto qualificado para falar sobre o tema. Embora este tópico esteja presente no filme, não foi algo que tivéssemos em mente quando começámos a trabalhar no argumento.”

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O filme de Hamaguchi, embora traga à tona questões de denúncia, transcende a mera crítica ao capitalismo ou à exploração dos recursos naturais por grandes empresas em busca de lucro. Ele parece mais interessado na exploração das conexões humanas. Não apenas a ligação entre homem e natureza, mas também as pequenas interações que permeiam a vida dos habitantes da vila, muitas delas ocorrendo, curiosamente, também dentro de automóveis, tal como visto no seu “Drive My Car”.

À medida que seguimos essas relações interligadas, gradualmente nos aproximamos do tema central do filme, que também lhe confere o título, chegando num desfecho inesperado, aterrador e muito controverso. Hamaguchi parece querer sugerir que, por natureza, somos todos seres benevolentes, apesar de nossas contradições e peculiaridades individuais. No entanto, somos suscetíveis à corrupção pelo ambiente em que vivemos.

Segundo Nietzsche, um dos maiores pensadores do assunto, o conceito de bem e mal é profundamente subjetivo e moldado pelas perspectivas individuais. Para ele, a moralidade não é um absoluto, mas sim uma construção cultural que reflete as vontades de poder das diferentes sociedades. “Bem” e “mal” são, assim, produtos de nossa interpretação, muitas vezes distorcidos por valores impostos.

Neste contexto, o filme de Hamaguchi ressoa como um espelho, desafiando-nos a refletir sobre as escolhas que fazemos e como elas afetam nossas conexões e nosso ambiente. Ele nos lembra que, mesmo em meio à corrupção potencial, temos a capacidade de moldar um mundo mais harmonioso. E portanto, num universo onde o bem e o mal são moldados pelas circunstâncias, somos chamados a ser os arquitetos da nossa própria moralidade.

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Veneza 2023: Hamaguchi impressiona com o enigmático “Evil Does Not Exist”
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