«Sobre Altas Cidades de Ossadas» – Das ruínas ou uma breve genealogia do progresso

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Depois de ter estado em competição na última Berlinale, a mais recente curta de João Salaviza, “Altas Cidades de Ossadas, marca o regresso do cineasta a Vila do Conde, onde, em 2005, foi premiado no Take One! com a sua curta Duas Pessoas” (2004), realizada quando ainda era estudante de cinema.

Nas suas anteriores curtas-metragens, como “Arena” (2009) ou “Rafa” (2012), mas também na sua longa Montanha (2015), é visível um enfoque nas dores de crescimento da adolescência. Os espaços periféricos onde as personagens deambulam erraticamente, na tentativa de sobreviver, acabam por enclausurá-las num pequeno mundo onde é a necessidade que reina. Só esta é soberana; é a madrasta severa que lhes força o crescimento, empurrando-as para dentro de um mundo que acaba nos limites do gueto, abismo construído pelo ódio que as separa da inocência e da infância.

A Pedreira dos Húngaros foi um desses espaços de clausura; uma “parte dos sem parte” – lembrando o conceito do filósofo francês Jacques Rancière – que foi fisicamente demolida, apagando-se assim da paisagem, a golpes de bulldozer, a sua – incomodativa – visibilidade. Essa “parte dos sem parte” permanece agora sob uma forma invisível, dentro de cada um dos seus ex-moradores e daqueles que fazem da evocação dessa memória uma forma de resistência.

Karlon Krioulo é um exemplo dessa resistência. Pioneiro do rap crioulo em Portugal, é um dos muitos cabo-verdianos que cresceram na Pedreira dos Húngaros e que foram realojados e separados da sua comunidade. Uma noite, Karlon decide voltar ao sítio onde foi enterrada a história de todos aqueles que ali foram construindo uma forma de comunidade autónoma e que, em cada gesto – em cada barraca que erguiam, em cada refeição que cozinhavam, em cada jogo de cartas ou em cada simples conversa –, não mostravam fraqueza, antes as suas capacidades motoras e intelectuais, iguais às de qualquer outro ser humano. Talvez fosse movido pela única nostalgia que lhe é possível: a das memórias de uma comunidade que, apesar da pobreza, preservou a sua cultura – a sua língua, os seus ritos, a sua gastronomia, a sua música, as suas danças, enfim, as suas formas próprias de sentir e pensar o mundo.

Salaviza já tinha mostrado o seu talento de esculpir os corpos com luz, na sua primeira curta Duas Pessoas. O rosto de Karlon é disso exemplo: os olhos ganham um brilho próprio, o rosto faz-se uma superfície de afectos. Os planos longos de rosto evidenciam a universal capacidade de sentir o mundo que contemplamos; mas, nos seus olhos fixos, parece estar um Angelus Novus, pintura de Paul Klee que Walter Benjamin interpretou como “o anjo da história”: que fixa o seu olhar no passado, contemplando o sucessivo acumular de ruínas, com um desejo de levar consigo os mortos para a todos restituir a vida, mas que uma tempestade – chamada progresso –, demasiado forte, empurra, inexoravelmente, para o futuro.

Este texto foi produzido como um dos participantes do 2.º Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema.

RealizaçãoJoão Salaviza
ArgumentoCarlos Furtado GomesRenée Nader Messora
ElencoCarlos Furtado GomesXama CabralMaria do Céu Magalhães
Portugal/2017 – Documentário
Sinopse
: Karlon, nascido na Pedreira dos Húngaros e pioneiro do rap crioulo, fugiu do bairro onde foi realojado. Noites de vigília, sob um febril calor tropical. Entre as canas de açúcar, um rumor. Karlon não parou de cantar.
Altas Cidades de Ossadas é um tateio inquisitivo e imaginativo às suas memórias, ao cerco institucional, e às histórias submersas de um tempo sombrio.

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