Rever o filme «Annie Hall» foi uma experiência reveladora. Se o espectador vê o filme, é o vivente que o irá sentir; e, se o primeiro tranquilamente lhe entrega a inteligência, o segundo terá que irremediavelmente lhe entregar o coração.
Estas duas dimensões caminham par a par, no filme. Nas primeiras imagens, Alvy (Woody Allen) fala sobre a sua história de amor com Annie (Diane Keaton), e alerta o espectador que irá dar a conhecer uma história de amor que falhou; mas aquilo que vemos a seguir é a prova de como, apesar disso, existe no amor (e diria também que no próprio cinema?) algo misteriosamente infalível. Este contraste traz-me à memória um verso de Caeiro onde o poeta diz que ver as coisas pela primeira vez é diferente de as conhecer, e que nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar. Foi isso que senti quando revi o filme, que quando o vi pela primeira vez talvez tenha só ouvido contar, e que, depois de o rever, foi como se o tivesse visto pela primeira vez.
Então o que aconteceu nesse intervalo para que eu possa dizer que finalmente vi o filme? Talvez me tenha acontecido esse encontro com Annie, que me tornou apto a ver o filme como se fosse pela primeira vez, com um olhar tão vivo como as memórias que permanecem. De repente, em algum momento das nossas vidas, as nossas memórias também ganharam molduras, também nos vimos a apanhar as lagostas do chão da cozinha, também nos vimos permanecer, apesar do tempo e da distância; e depois de tudo, vimo-nos a tentar apanhar os cacos do chão.
Ver o filme depois desse encontro torna tudo mais real, e mais real do que tudo, sentimos a melancolia que fica. Por isso, existem filmes que vivem acima da técnica, e o grande valor de «Annie Hall» está na forma como a realização consegue estar à altura do argumento; tudo o que é posto em cena – ou melhor, posto na superfície da tela – consegue traduzir a verdade que existe na história desse encontro para que possa transmitir algo mais do que conhecimento. Ele consegue ser altamente reflexivo e analítico, um exercício profundo de introspecção, sem nunca deixar que se dissipe o calor que a história comporta.
O filme torna-se num mundo das ideias platónico incarnado. Quando o vemos, temos de acreditar que, apesar da separação, o amor entre Alvy e Annie ainda persiste e é real, que tem algo de eterno. Apesar da melancolia e com a melancolia a pesar, somos levados a acreditar que algo misteriosamente sobrevive e resiste à passagem do tempo. Que continua algures, ainda a olhar para – e por – nós. Não é isso que sentimos com tudo o que amamos e que vamos perdendo pelo caminho?
Para a Juliana, por todas as lagostas que apanhamos do chão.