Arqueologia do Cinema Brasileiro (Parte 4) – CINE-OLHO: O cinema soviético em foco

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O legado soviético para os estudos da estética do filme é inegável e parece se renovar a cada geração, que resgata os mestres e oferece aos pesquisadores e entusiastas a possibilidade de uma compreensão profunda a respeito da arte cinematográfica.

Mesmo assim, ainda é esparsa e pouco organizada a fortuna teórica de Eisenstein, Pudovkin e Kuleshov. Também padecia desse problema a enigmática e excêntrica figura de Dziga Viértov (1896-1954). Ao menos, neste caso, a devida correção chega ao mercado editorial brasileiro na forma do consistente volume Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos (ed. 34), com organização e notas do cineasta e pesquisador Luis Felipe Labaki, que traduziu os escritos de Dziga pela primeira vez diretamente do russo, retificando, inclusive, a transliteração do sobrenome: “Viértov”, diferente do costumeiro “Vertov”.

Tal esforço de pesquisa e tradução, em primeiro lugar já trata de reparar problemas com versões anteriores, baseadas num volume publicado em 1966, repleto de rasuras e supressões. “Descobri que, apesar de ter sido fundamental para a disseminação dos textos de Viértov, a coletânea de 1966 é um livro em que quase todos os materiais incluídos sofreram algum tipo de intervenção e de cortes do editor e da censura, e essas interferências foram reproduzidas nas traduções publicadas em inglês, francês, espanhol etc”, informa Labaki, que visitou o Arquivo Estatal Russo de Literatura e Arte, nas viagens que fez para reunir aquilo que viria a ser sua dissertação de mestrado pela ECA/USP e conta com texto de orelha escrito por Ismail Xavier. Uma chancela e tanto, já que Xavier havia, nos anos 1980, se ocupado de reunir alguns escritos de Viértov em seu seminal A Experiência do Cinema (1983).

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A base do volume é a nova edição de uma reunião mais cuidadosa dos escritos do cineasta, porém com doses extras da complexa poética que Viértov construiu. “Cine-olho inclui também alguns materiais inéditos mesmo na Rússia, identificados por mim no arquivo de Viértov durante o mestrado e também em uma visita mais recente, em 2019. É o caso de uma longa carta sobre seu filme Três heroínas, relegado às prateleiras, e de uma lista de diálogos de um de seus últimos filmes”, informa seu organizador.

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Dziga Viértov (1896-1954)

 

Quem foi Viértov:

Nascido em Bialystok, território polonês, que fazia parte do Império Russo, Viértov, desde muito jovem tomou contato com as novidades tecnológicas do início do século, como o fonógrafo e o próprio cinema. Chegou a estudar medicina, mas logo se envolveu com grupos futuristas, influenciado por Maiakóvski. Após ver Lenin discursando sobre o papel do cinema na construção da nova ordem social, em 1918, Viértov se colocou à disposição para colaborar com o Kino Komitett. Já em 1922, Viértov produzia seus “Kino-Pravdas”, série de cinejornais que documentavam a vida do campesino sem os maneirismos do cinema ocidental. O jovem realizador acreditava num cinema direto, sem costuras dramatúrgicas, por isso logo se viu em rota de colisão com interesses maiores, sobretudo do próprio Estado.

Viértov defina-se não como um diretor, mas como um “Kinoc”, um proletário que além da foice e do martelo também usaria a câmera como instrumento da revolução em favor de um retrato honesto e direto, sem ficcionalizações ou representações idealizadas. No entanto, o aparente hermetismo de suas ideias minou seu projeto, e suas teorias encontraram resistência dentro de seu próprio país: “O governo e a Comitern ainda não entenderam que, apoiando Kino-Pravda de maneira séria, eles poderiam encontrar um novo porta-voz, uma rádio visual para o mundo”, queixa-se num de seus escritos.

Seu trabalho mais conhecido, O homem com uma câmera (1929) é o exemplo mais pulsante dentro do gênero “sinfonia da grande metrópole”. Nele, assistimos a um dia inteiro na vida de uma frenética, moderna e engajada Moscou, que parece ressurgir do antigo feudalismo dos Romanov para ser uma capital repleta de máquinas, cabos telegráficos e telefônicos, bondes elétricos e trens apressados que singram o país exaltando o progresso.

Com a chegada do cinema sonoro, Viértov adiantou-se em compreender e propor uma aplicação inteligente e não utilitarista da nova tecnologia em Entusiasmo – sinfonia de Dombass, tão inventivo em seu ritmo de montagem quanto O homem com uma câmera, porém valendo-se do som para potencializar a experiência do espectador.

Na década de 1930, o cinema soviético deu uma guinada rumo ao que conhecemos como “realismo social”, imposto pelo regime de Stálin, que substituía a liberdade criativa das vanguardas por um discurso patriótico heroico. Nesse momento Viértov, assim como outros colegas, viu-se cada vez mais isolado. “Ele sofreu por ver seus filmes e projetos serem ignorados ou engavetados com frequência cada vez maior. Mas, há também outro aspecto: na URSS, muito rapidamente foi se constituindo uma narrativa “evolutiva” do cinema para o país. Já no final dos anos 1920, Viértov era visto como um dos pioneiros, talvez o maior nome da “primeira fase” do cinema, anterior ao O Encouraçado Potemkin ou A Mãe, ambos de 1926. Mas, havia uma impressão de que ele já teria cumprido seu papel histórico, apesar de continuar produzindo e introduzindo inovações estéticas fundamentais”, analisa Labaki.

Por outro lado, já a partir da década de 1950, seu trabalho passou a ser revisto e reverenciado pelas novas gerações de cineastas, “em ambos os lados da cortina de ferro”, como salienta o organizador de Cine-Olho. A influência não veio somente dos trabalhos que Viértov concluiu, mas sobretudo das anotações de projetos que ele não pôde realizar.

 

O livro:

Organizado em oito partes, Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos compila material produzido por Dziga Viértov entre 1918 e 1954. O largo espectro coberto pela pesquisa de Luis Felipe Labaki é, na verdade o mais completo inventário da febril produção do cineasta soviético e, nele, o leitor encontra os roteiros de suas obras mais conhecidas, esboços de roteiros que não concluiu, manifestos centrados na figura dos “Kinocs”, projetos de estatutos, textos de palestras, poemas e pronunciamentos em reuniões oficiais do Partido Comunista.

Algo patente na fortuna literária de Viértov é sua preocupação com o cinema enquanto estatuto indissociável da vida. Para ele, a arte seria um dos pilares de uma existência total sob os novos regimentos do socialismo. Diferente de seus colegas, como Eisenstein e Pudovkin, que teorizavam em torno da construção do filme, Viértov via o filme como extensão de todo o programa nacional e uma ferramenta essencial do povo e para o povo. Segundo ele, o Cine-Olho seria “a vida que o olho não vê”, portanto, um reflexo direto da vida mesma. Um dispositivo capaz de desfazer a opacidade do cotidiano e torná-lo universal.

Mesmo que tais conceitos nos pareçam extremamente abstratos e/ou utópicos, não se pode negar a continuidade desse cinema conforme realizadores que se seguiram a Viértov. Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, no final dos anos 1960, imbuídos da verve revolucionária dos eventos de 1968, criaram um coletivo com o nome do diretor para produzirem um cinema libertário e crítico, em filmes como Pravda e Vento do Oeste, de 1969, e Tudo vai bem, 1972. Também há a influência de Viértov na ensaística fílmica de Chris Marker, e o documentarista brasileiro Vladimir Carvalho, que foi assistente de Eduardo Coutinho em Cabra marcado para morrer (1964-1984) e dirigiu, entre outros, O país de São Saruê (1971) e Rock Brasília – a Era de Ouro (2011), já foi chamado por Glauber Rocha de “nosso Viértov das Kaatingas”. As gerações contemporâneas também agradecem ao mestre soviético, e no cinema de Pedro Paulo Rocha e Well Darwin, são explícitas as pesquisas quanto ao uso da tecnologia e à função do filme enquanto mídia dotada de uma linguagem própria, que comporta uma revolução constante e uma reflexão transcendente.

Cine-Olho é, também, um rico material acadêmico, que se preocupa em reunir num só volume o que há de mais essencial para o entendimento de uma poética que se pretendia além das fronteiras dos meios e gêneros da comunicação. “Espero que o livro mostre o quão amplo era o arco de interesses de Viértov. Ele escreveu sobre o cinema de não-ficção, a ética do documentário e, também, sobre animações, anúncios publicitários, a então futura televisão, filmes científicos e até mesmo sobre filmes infanto-juvenis”, conclui o organizador e tradutor.

 

 

Texto inédito publicado no Cinema Sétima Arte por Donny Correia: mestre e doutor em Estética e História da Arte pela USP, crítico vinculado à ABCA e Abraccine e autor de Cinefilia Crônica: comentários sobre o filme de invenção, entre outros.

 

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