Ira Sachs entra nos holofotes de Berlim com um filme que expõe a toxicidade de uma relação a três, ao mesmo tempo que elabora um antídoto anti-wokeness com um protagonista gay e narcisista com o qual conseguimos nos relacionar. “Passages” é o melhor filme do realizador americano.
É difícil falar de Passages, o último filme de Ira Sachs sem falar da dimensão política que ele transporta. A representação no cinema de personagens queer como seres reprováveis há muito tempo que é objeto de controvérsia. Filmes como o extraordinário “Tár“, sobre uma lésbica narcissista que abusa do seu poder (e que Cate Blanchett e Todd Field vêm apresentar numa sessão de gala na quinta) fazem parte do mesmo grupo de filmes controversos com personagens gays que está a gerar vários tipos de reações. No caso de “Passages”, a provocação de Sachs tem um valor ainda mais simbólico.
Num artigo recente da revista Variety intitulado “Por que os festivais de cinema estão passando longe de filmes controversos?” era mencionada uma polêmica envolvendo o filme gay “Waking Up Dead” do realizador Terracino. O filme tinha um protagonista gay que era transfóbico e, por isso, viu o seu filme ser banido dos festivais que antes o receberam de braços abertos. Este episódio veio à mente depois de ver o filme de Sachs, que estreou ontem na paralela Panorama.
O protagonista de Sachs, o fabuloso Franz Rogowski, interpreta um realizador homossexual que não faz nada o tipo do “gay representativo” que um certo “woke mob” (palavras de Terracino), o mesmo que cancelou “Waking Up Dead”, tanto deseja estabelecer. Tomas é narcisista, egoísta, tem um caso extraconjugal com uma mulher e até se utiliza de uma gravidez com ela como instrumento de auto afirmação. Não que o personagem vivido por Rogowski seja definido somente pela sua orientação sexual ou a sua índole narcisista, mas aqui ambas são importantes para compreender a complexidade do anti-herói de Sachs.
Ao forjar um protagonista gay e errático, que afeta a vida de todos à sua volta, Sachs está a nos dizer que tais retratos também podem fornecer oportunidades para explorar temas complexos relacionados à questões queer muito comuns como insegurança, homofobia internalizada e narcisismo. E precisamente por isso, torna-se essencial que os realizadores considerem as implicações de suas escolhas.
A representação de personagens queer que também são “pessoas boas” e de “sucesso” finalmente está na ordem do dia, e esperamos que fiquem para além do trend atual. Mas uma questão importante que a atitude “anti-wokeness” de Sachs levanta é como normalizar estes personagens no cinema sem aderir a um manual de conduta pré-estabelecido para que esta aceitação possa acontecer de fato?
Em outras mãos este dilema moral poderia ter resultado num filme de gosto duvidoso, mas o grande trunfo de Sachs é nunca julgar os seus personagens, muito pelo contrário, ele até obriga a audiência a negociar a sua relação com Tomas, justificando uma certa simpatia por ele.
Quando Tomas faz sexo com Agathe e corre para casa para contar a novidade ao marido, Martin (Ben Whishaw) dizendo que a experiência de fazer sexo com uma mulher fez ele sentir uma coisa “nunca antes vivida” Tomas é alheio ao sofrimento que isso causa ao parceiro. E a cena é tão dilacerante porque ela serve para ilustrar como relações amorosas podem ser sabotadas por interesses individuais, apesar de ainda serem movidas por amor. Só no momento quando Martin se levanta e deixa a Tomas a falar sozinho é que nos damos conta da crueldade da situação.
Mas não é só sobre as políticas de identidade que a conversa à volta de “Passages” está a se formar. O filme tem muito sexo também. E alguns espectadores estão particularmente sensíveis com uma cena de sexo entre Tomas e Martin, que tem gerado certa controvérsia desde sua exibição em Sundance.
No entanto, aqui pela Europa arriscamos palpitar que cena não deverá causar assim tanto espanto, já que não expõe nada de realmente revelador ou chocante para além do aspecto mundano (e sim, sensual) do contexto em que ela se apresenta. “Passages” é todo feito desses pequenos momentos, cheios de contradições e banalidades, e que no seu conjunto retratam a complexidade da vida cotidiana dentro de um relacionamento, e que inclui, obviamente, a sexualidade e a intimidade partilhada.
O brasileiro Mauricio Zacharias, que foi um dos roteiristas de “O Céu de Suely” de Karim Ainouz, aqui divide o roteiro com Sachs. Zacharias é já um colaborador de longa data do realizador americano, juntos eles escreveram a maioria dos guiões dos filmes de Sachs, incluindo “Homenzinhos” (2016), “Deixa as Luzes Acesas” (2012) e de “Frankie” com Isabelle Huppert que estreou em competição em Cannes em 2019. Em “Deixa as Luzes Acesas”, que foi a segunda colaboração entre os dois, eles já abordavam a questão dos desejos individuais e dos componentes tóxicos dentro de uma relação.
É o melhor filme de Sachs, que antes da Berlinale colecionou dezenas de reações positivas por Sundance. Na conferência de apresentação do filme em Berlim, o realizador disse que este foi o filme que “mais próximo chegou de si e da sua verdade” e talvez essa confissão seja uma pista crucial para compreender a grandiosa e complexa carga emocional de “Passages”.