Em terras tupiniquins, o tópico central de discussões no último mês tem sido a revisão da legislação relacionada à Cota de Tela.
Caso não esteja familiarizado com esse termo, a “Cota de Tela” é uma obrigação estabelecida por lei que determina que os cinemas exibam um mínimo de filmes nacionais durante um período específico. Em algumas regulamentações, essa obrigação não se limita apenas à quantidade de filmes, mas também abrange a diversidade de obras apresentadas.
Para uma melhor compreensão, podemos observar o exemplo da Coréia do Sul proposto pelo advogado brasileiro Nichollas Alem no artigo “O que são cotas de telas”, publicado no site do Instituto Idea. No caso coreano, por muitos anos, foi estipulado que obras locais fossem exibidas durante 146 dias ao longo do ano, representando cerca de 40% do tempo total de exibição.
Como resultado direto dessa política e de várias outras iniciativas de incentivo, a parcela de mercado das produções coreanas aumentou de aproximadamente 2% no início dos anos 90 para impressionantes 57% em 2014. Isso ilustra que a adoção de um conjunto abrangente de medidas, que incluíam não apenas cotas, mas também apoio financeiro, promoção da exportação e programas de capacitação, desempenhou um papel fundamental na construção das bases para uma indústria audiovisual sólida e competitiva.
No Brasil, a Cota de Tela é uma imposição direcionada às empresas exibidoras, determinando a inclusão de filmes brasileiros de longa-metragem em sua programação. Anualmente, um Decreto presidencial define o número de dias destinados a cumprir essa cota, a variedade de títulos a serem mostrados e o máximo de ocupação permitido para uma mesma obra em um complexo de salas.
Além disso, a ANCINE assume a responsabilidade de estabelecer outros critérios e procedimentos relacionados ao cumprimento e avaliação dessa cota, emitindo uma Instrução Normativa (IN). Tal exigência encontra sua base legal no artigo 55 da Medida Provisória nº 2.228-1/2001 e atualmente é regulamentada pela IN nº 88/2010.
A origem da Cota de Tela remonta a ações implementadas já nos anos 1930, quando o governo brasileiro emitiu um primeiro decreto para preservar a produção cinematográfica nacional, inspirado por medidas semelhantes em outros países. Embora tenha sido introduzida por meio da Medida Provisória (MP nº 2.228) em 2001, essa obrigação permaneceu até o ano de 2020, mesmo sem ter passado por votação no Congresso Nacional, devido à publicação prévia à Emenda Constitucional (EC) nº 32 de 2001. Essa emenda estabelece um prazo de até 45 dias para o Congresso analisar as MPs, sob risco de suspender outras deliberações legislativas.
Em 2019, sob os efeitos da MP, o governo Bolsonaro definiu que empresas com apenas uma sala de cinema destinariam 25 dias por ano à exibição de filmes nacionais. Para empresas maiores, essa obrigação era estendida a 57 dias anuais.
No ano de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional a regra que estabelece um mínimo de dias para a exibição de filmes nacionais, assim como a norma que determina que 5% dos programas culturais, artísticos e jornalísticos devem ser produzidos na localidade para a qual os serviços de transmissão de rádio e TV foram concedidos.
Na época, o relator da ação, ministro Dias Toffoli, declarou que a Cota de Tela é mecanismo para proteger obras brasileiras e possibilitar a exibição da produção audiovisual nacional em salas de cinema. Seu propósito é social e econômico, pois fomenta a indústria nacional, amplia a concorrência no setor e promove geração de empregos. Ele lembrou que, do ponto de vista econômico e estratégico, a medida é necessária, uma vez que o domínio internacional na exibição de filmes implica constante drenagem de recursos para fora do país.
Ainda, segundo o relator, a MP 2228/2001 não fere a liberdade de iniciativa das empresas de exibição de filmes nem o princípio da isonomia, conforme alegado pelo sindicato, mas apenas proporciona o acesso do público à produção cultural nacional.
Toffoli lembrou que a Constituição Federal determina que o Estado deve ter forte presença para incentivar a cultura nacional, e se a política pública implementada pela Cota de Tela, por um lado, impõe uma restrição às empresas que administram salas de cinema, por outro favorece o desenvolvimento econômico, com o estímulo à produção audiovisual brasileira.
Assim, não há qualquer inconstitucionalidade sob a ótica das liberdades econômicas. Ele destacou, ainda, que, segundo os dados oficiais sobre frequência a salas de cinema, não há qualquer encargo excessivo às empresas do setor (leia aqui a íntegra do voto do ministro Dias Toffoli no RE 627432)
A atualização da regulamentação busca prolongar a validade das cotas até 31 de dezembro de 2043, embasada em estudos realizados pela Agência Nacional de Cinema que fundamentaram a reformulação do modelo com base na quantidade de dias de exibição – na regulamentação anterior, a norma determinava 63 dias de exibição para cada sala, independentemente do tamanho da empresa.
A ministra da cultura, Margareth Menezes, destaca que a reintrodução da Cota de Tela está alinhada às iniciativas do governo federal para fortalecer economicamente o setor cultural, abrangendo também a regulamentação dos serviços de vídeo sob demanda (VoD) e o fornecimento de conteúdo audiovisual por meio de plataformas digitais de streaming.
Confirmando essa retomada, na terça-feira da semana passada, dia 22, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado emitiu um parecer favorável ao Projeto de Lei 3.696/23, popularmente conhecido como PL da Cota de Tela. O Projeto, proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (AP), estabelece a obrigação para os cinemas exibirem filmes nacionais, sob pena de multa que pode atingir até R$ 2 milhões.
“A cota de tela para o cinema estipula a compulsoriedade para as empresas exibidoras de incluir em sua programação obras cinematográficas nacionais, com ênfase atual em longas-metragens, com o propósito de oferecer oportunidades para a difusão da produção audiovisual brasileira nas salas de projeção. Semelhantemente, a cota de programação da TV paga assegura a presença de conteúdo nacional nas programações de canais por assinatura”, diz um trecho do relatório do senador Humberto Costa (PT-PE).
No início deste mês, o senador Humberto Costa (PT-PE), relator do parecer favorável da CAE, fez um pronunciamento no Plenário do Senado, onde ressaltou que a cota de tela é o mais antigo e testado mecanismo de proteção para os filmes nacionais. Além disso, ele observou que a ausência dessa medida poderia acentuar ainda mais o declínio da relevância do cinema brasileiro. O senador enfatizou a importância de uma nova legislação que leve em consideração as transformações no mercado e a necessidade de uma instrução normativa que ajuste a cota de tela de acordo com as demandas do setor.
No referida ocasião, o senador petista também sublinhou que o setor audiovisual e cinematográfico brasileiro enfrenta um período delicado, o qual foi ainda mais agravado pelo fechamento das salas de cinema durante a pandemia. O senador destacou que, nos primeiros seis meses deste ano, os filmes nacionais alcançaram menos de 1% do público total nas salas de cinema do Brasil, enquanto os blockbusters dominavam o mercado.
Nos últimos períodos, conforme observado pelo parlamentar, ocorreu uma disputa de audiência entre os filmes norte-americanos “Barbie” e “Oppenheimer”, fenômeno batizado de “Barbenheimer”. O senador lamentou que, apesar de “Barbie” estar alcançando recordes de público e ter arrecadado mais de 160 milhões em bilheteria, estabelecendo-se como a produção de maior sucesso no ano e também como a maior bilheteria já registrada da Warner Bros. no país, o cinema brasileiro não tem encontrado um acolhimento similar.
Para Humberto, é o momento de uma profunda reflexão sobre a priorização do audiovisual no país e de se implementarem incentivos que promovam e revigorem a indústria cinematográfica nacional.
Finalizado sua fala na tribuna, ele disse: “Essa é a prioridade que damos ao nosso audiovisual? É esse o olhar que teremos sobre ele, seguindo a submetê-lo a uma concorrência feroz e desproporcional, sem qualquer mecanismo de incentivo que o promova e o estimule, como fazem os países empenhados em valorizar a sua cultura? Penso que podemos pegar esse cenário extremamente simbólico para torná-lo como exemplo necessário a uma verdadeira indução pelo Estado para a preservação e o reflorescimento da nossa indústria do audiovisual”.
Por sua vez, o proponente da iniciativa, o senador Randolfe Rodrigues, celebrou a decisão da Comissão. Através das redes sociais, Rodrigues expressou sua satisfação com a aprovação do projeto, ressaltando que esta medida contribui para o fortalecimento da cultura nacional.
Atualmente, a proposta aguarda análise na Comissão de Educação e Cultura (CE), com uma reunião agendada para esta terça-feira (29) em caráter de urgência.
Contudo, há preocupações quanto ao fato de que essa medida, sem ter passado por uma discussão ampla com todos os segmentos da indústria cinematográfica, possa representar uma ameaça aos exibidores brasileiros, que ainda estão enfrentando os impactos prolongados da paralisação causada pela pandemia do coronavírus (Covid-19).
Segundo as principais entidades representativas do setor, essa proposta poderia levar ao fechamento de complexos cinematográficos com uma a três salas, especialmente em pequenas e médias cidades pelo país, acarretando em outros efeitos adversos.
Representantes da Federação Nacional das Empresas Exibidoras Cinematográficas (Feneec), Associação dos Exibidores Brasileiros de Cinema de Pequeno e Médio Porte (AEXIB), Sindicato das Empresas Exibidoras Cinematográficas nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, assim como a Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex (ABRAPLEX), estiveram em Brasília buscando uma discussão mais abrangente sobre o assunto. No entanto, suas demandas não foram atendidas.
De acordo com os representantes, o texto do PL não considera a realidade dos cinemas, que enfrentam uma escassez de lançamentos, tanto nacionais quanto internacionais, devido à paralisação das produções durante a crise.
Mesmo após a retomada das operações das salas, o setor ainda apresenta uma diminuição de 35% no número de lançamentos, uma redução de 40% na frequência de público em comparação com o cenário pré-pandêmico e uma acumulação de dívidas na ordem de milhões de reais ao longo desse período. Essa situação tende a se agravar diante da greve em curso dos argumentistas e atores de Hollywood, que permanece sem resolução.
Diante desse cenário, os exibidores estão apelando para que o PL não seja votado em regime de urgência e que seja iniciado um diálogo aberto para discutir os impactos regulatórios e econômicos, abrangendo todos os envolvidos na cadeia, como a ANCINE, o Conselho Superior de Cinema, produtores, distribuidores e exibidores.
Em breve, mais informações…