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«Democracia em Vertigem» – Quando a memória individual é também colectiva

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São cada vez mais evidentes as convulsões políticas que têm assolado, nos últimos anos, o povo brasileiro. Tanto a comunicação social como as redes sociais assumem o papel de principal veículo de difusão dessa realidade, no Brasil e no mundo. Porém, estes meios de informação, tornaram-se os mais poderosos e eficazes instrumentos de manipulação de massas. Quando a televisão e o telemóvel se tornam dispositivos que potenciam cada vez mais a criação de um mundo falsificado, onde facilmente se tomam as mentiras por verdade, o cinema transforma-se numa arma de resistência quando animado por uma vontade de verdade.

Num tom de voz sussurrante, Petra Costa conta-nos como a sua história de vida se cruza com a história da democracia brasileira. A realizadora contava dois anos de idade quando o Brasil transitou para um regime democrático, que nos últimos anos tem visto os seus pilares fundamentais sendo sistematicamente destruídos. A sua preocupação transcende as questões de ordem ideológica, preferindo fazer uma breve genealogia da política brasileira e como a sua família fez parte dela, de formas opostas. Enquanto os seus pais eram torturados pela luta contra o regime ditatorial, a empresa de construção dos seus avós prosperava, fazendo parte de uma elite que há muito participa – activamente – na política brasileira. Há coisas que não mudam. A realizadora a certa altura lembra o curto diálogo entre um governante e um empresário dentro do Congresso Nacional, em que o governante diz: “Você aqui?”, ao que o empresário responde, “nós estamos sempre aqui, vocês é que mudam”. Desta forma, desmistifica-se aquela ideia bastante popular de que nos regimes autoritários impera a seriedade e a retidão, quando apenas existe um sentimento religioso que leva a cabo um processo de consagração, cuja separação entre governo e povo se intensifica, de tal forma, que qualquer comportamento dessa esfera sagrada é automaticamente legitimado, branqueado pelo encantatório bálsamo que emana da sua posição transcendente.

Mas, quando queremos contar a história de algo tão importante como a génese de uma democracia, devemos fazer um exercício de dessacralização, e nada poderá ser mais verdadeiro e mais belo do que a coragem para mostrar como no seu seio familiar convivem o Brasil sagrado e o Brasil profano, a elite e as esquerdas. A premissa política de Petra não está desligada da sua vivência pessoal, dos que foram à boleia do regime e dos que sofreram pelas suas mãos, em tempos de resistência. Contudo, essa história pessoal é feita de sangue e dor, daquilo que os seus pais deixaram de si na luta por um Brasil democrático e livre. Se assim foi, como pode um brasileiro consentir que algum actor político ouse ameaçar aquilo que de mais precioso foi conquistado politicamente?

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Petra traça uma linha desde Lula da Silva até Bolsonaro, essa linha chama-se democracia. Na sua origem temos um líder extremamente popular, um ex-trabalhador metalúrgico e ex-sindicalista, que consegue galvanizar a classe trabalhadora do Brasil desde os tempos da ditadura militar. Lula aparece como alguém de inegável importância na história da política brasileira, que ao longo dos anos em que liderou o Partido dos Trabalhadores, foi percebendo que, para lutar contra os que se banham no pantanal, teria que colocar nesse pântano pelo menos um pé: manter o seu pé esquerdo limpo e sujar o direito. Lula em 2002 opta pela conciliação, dá uma carícia nos empresários e é eleito. No seu mandato cria políticas sociais que se destacam pela diminuição da fome e da pobreza, e são vários os relatos que Petra capta, de pessoas pobres que conseguiram colocar filhos a estudar, e que sem essas políticas continuariam na mesma lógica conservadora da reprodução da mesmidade. Mas, Lula também jogou o jogo que em tempos criticara, e aquela ética proclamada infelizmente não se efectivava, pois o povo brasileiro esqueceu que Lula não fez uma revolução à escala universal, entrou, como todos os políticos no mundo, inclusive os de esquerda, dentro do paradigma capitalista.

O povo brasileiro depositou nele a esperança de que a mudança tanto esperada, por fim, acontecesse e a corrupção deixasse de assolar o país. Porém, entre mensalão e lava-jato, a mesma lógica repete-se e o povo desespera. Lula escolhe Dilma Roussef como sua sucessora na presidência e Petra mostra-nos como a sua mãe e Dilma estiveram presas no mesmo local. As duas conversam e Petra mostra mais uma vez como a lógica afectiva vai fazendo o contraponto com os grandes palcos políticos. Dilma confessa que, com a sua nomeação, deixou de ter a liberdade do anonimato, saltando directamente para a presidência. Porém, os seus dias na presidência estavam contados, assim como a própria democracia esperava um duro golpe. O impeachment estava a caminho. Dilma Roussef é destituída da presidência num clima de plena agitação, dentro e fora da Câmara dos Deputados.  A agitação transforma-se num ódio generalizado pela esquerda brasileira e no país, a partir de então, abre-se um abismo nos pés do povo, separando-o, irremediavelmente. As forças conservadores anti-esquerda veem, no momento, uma oportunidade para enfraquecer ainda mais a esquerda, e Sérgio Moro, usando de todo o mediatismo possível e de um sentido de justiça degenerado- indo contra todos os princípios constitucionais de um Estado de Direito -, leva a cabo uma perseguição ao ex-presidente, usando como prova um power-point, o bastante para emitir o seu mandato de prisão.

A democracia brasileira virou o saco de pancada das forças conservadoras. No final desta máquina trituradora de comunistas/petistas, está Jair Bolsonaro, à espera que a cabeça de Lula role para a colocar em cima de uma bandeja, erguendo-a, orgulhosamente, diante do povo, como se ali estivesse o fim de toda a política corrupta do Brasil. Porém, esse gesto simboliza antes a liberdade plena que as forças conservadoras irão ganhar para dar um novo fulgor à oligarquia do país. Onde o povo vê um fim, uma solução para a corrupção, essas forças, com o teatro judicial anti-corrupção que montaram, veem um começo de um Admirável Brasil Novo, onde a cabeça atordoada do trabalhador, que agora navega à deriva, vem atracar com o pescoço mesmo por baixo da lâmina afiada da política dos seus carrascos.

O documentário de Petra é uma força contra o esquecimento. Vem relembrar as origens da democracia brasileira, e o quanto ela custou aos que lutaram por ela. As suas memórias pessoais são também as memórias do Brasil, a suor dos pais na libertação do país e, do outro lado, a vontade de conservação de um Brasil oligárquico. A forma como Petra escolhe Brasília como cenário e como uma das personagens centrais do seu documentário torna evidente como esse espaço reflecte todo um país: um Palácio da Alvorada deserto, frio, como se fosse já impossível habitar aquele espaço, que ficou tomado pelos espectros que levaram a democracia ao seu desgaste actual; e o exterior dividido por barreiras reflecte uma sociedade que se fracturou tão intensamente.

Em nenhum momento a realizadora quer ensinar algo a alguém; nunca se eleva para querer apontar o dedo individualmente. O tom sereno contrasta com as emoções tumultuosas generalizadas que encobrem mais a realidade do que a desvelam. Petra oferece uma bela oportunidade para sentar, ver e reflectir sobre aquilo que está a acontecer no seu país. Para que não cesse a alegria e o dionisismo resplandecente que caracteriza o povo brasileiro, é preciso lançar um olhar atento no estado da sua democracia e relembrar a sua origem. E espera-se que este exercício de reflexão se faça, não só no Brasil, mas em todas as nações que se querem livres. O trabalho de Petra é mais do que um filme, é uma necessidade, um pedaço da sua consciência, do seu corpo, da sua história, que agora partilha com o mundo, para que no futuro, esse pedaço de si e do seu país, possa ter um brilho inapagável; como se condensasse dentro de si o passado, o presente e já o futuro, mesmo na sua incerteza.

Ao povo brasileiro, em especial a todos os meus familiares.

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