Um todo maior que a soma das partes – é como se descrevem as grandes obras: a capacidade de abraçar impossibilidades lógicas, realistas, através de um sentimentalismo único. “Dor e Glória” torna-se maior que qualquer sensação pós-filme, configurando uma experiência única no domínio humano e sensível. A emotividade poética com que nos traz todo o amor que Salvador Mallo, o protagonista precoce de uma história por ele narrada e dirigida, nos quis, com humildade e respeito, nos transmitir. Antonio Banderas (conhecido do grande público, por papéis como em “Evita” (1996), “A Máscara de Zorro” (1998) e, mais recentemente, na série do National Geographic, “Genius” (2017-) – interpretando Pablo Picasso com grande requinte), foi vencedor de Melhor Ator no Festival de Cannes, e dá corpo e alma a um cineasta espanhol em decadência, afectado por uma mágoa interior incapacitante, que auto-mutila o seu processo criativo. Em resposta à pergunta “o que vais fazer da tua existência sem escrever?”, Salvador, melancólico, diz: “Viver, suponho”. Aí temos a essência da obra.
Todo o filme acontece sem que o espectador dê por ela do hino artístico que está a evidenciar. Vive da imaginação, de flashbacks, de uma narração cuidada e pessoal do protagonista, que nos vai contando as vicissitudes da sua dor e glória – que sempre andaram de mãos dadas. Com argumento e realização de Pedro Almodóvar, vemos um trabalho sério, algo biográfico e de cariz mais pessoal do cineasta, conhecido pelas suas obras maiores “Tudo Sobre a Minha Mãe” (1999) e “Fala com Ela” (2002) – com a qual arrecadou o Óscar de Melhor Argumento Original. Pedro Almodóvar é um mestre da escrita, que consegue imortalizar todos os sentimentos através de uma linguagem sensorial e um tacto intelectual inolvidável.
No desenrolar da acção, Salvador reencontra Alberto Crespo (interpretado por Asier Etxeandia, conhecido pelos seus papéis de relevo na curta “Por siempre jamón” (2014), na série Velvet (2013) e, ainda, no filme “The Bride” (2015), que lhe arrecadaram algumas nomeações e prémios), actor protagonista do seu grande clássico (com 30 anos), “Sabor”. O desenvolvimento da história dá-se em Madrid nos dias de hoje, e começa a crescer em valor com os diálogos entre Salvador e Alberto, que se reconciliam após algumas divergências. Reencontram-se para prestar homenagem ao seu filme, e acabam por recordar o passado e perceber que o amor pelo cinema que os liga é indescritível. Tal como o próprio Salvador enalteceu, “escrever é como desenhar, mas com letras”. Escrever é um desenho da alma, da vida, de uma paixão soberba por sonhar (acordado… e vivo).
Salvador ia escrevendo, mas sempre sem vontade de publicar. Alberto sugeriu interpretar a sua obra “O Vício”, e o realizador pediu o seu anonimato, por ser demasiado intimista: era a história de amor entre ele e Federico Delgado (interpretado por Leonardo Sbaraglia) – separaram-se por causa do estilo boémio de Federico –, que foi assistir à sua estreia e decidiu procurá-lo. A verdade é que, tal como se enaltece na obra, “O amor talvez mova montanhas… mas não basta para salvar a pessoa que se ama”. De enfatizar que a forma como Alberto interpreta o seu texto é verdadeiramente extraordinário, constituindo um dos muitos – e sempre reconfortantes – clímaxes do filme.
“O melhor ator não é aquele que chora, e sim o que luta para conter as lágrimas”. Com esta obra-prima, fica difícil ficar indiferente. Com o encanto dos protagonistas, o espectador vai para casa… (finalmente) feliz.
Realização: Pedro Almodóvar
Argumento: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Asier Etxeandia, Leonardo Sbaraglia
Espanha/2019 – Drama
Sinopse: Salvador Mallo (Antonio Banderas) é um diretor de cinema, que se vê obrigado a refletir sobre as escolhas que fez ao longo da sua vida quando o passado e presente desmoronam ao seu redor.