Naquela que será, provavelmente, a cena indispensável de “Ema“, duas personagens discutem com a devida urgência o princípio teleológico da música reggaeton. “É um ritmo hipnótico que te emburrece”, diz a primeira. “É a possibilidade de dançar o orgasmo”, corrige a segunda. O filme coloca-se inequivocamente do lado desta última, mas não porque encontre nela o grande riso dos “integrados” contra o barafustar dos “apocalípticos” – é uma questão muito mais modesta, muito mais prática, a que se joga nesse diálogo. É Larraín que precisa de justificar quer o objeto, quer a abordagem de “Ema”. Ele sabe, certamente, quais os perigos de filmar corpos obscenamente belos, jovens e saudáveis, a fazer e a dizer coisas atuais, cheios de uma graça também ela bastante atual, sempre à beira do videoclipe. É-lhe útil, portanto, defender o reggaeton para nos convencer de que não é um vampiro, como se dissesse: a juventude tenho-a no pensamento, não precisei de a roubar às personagens. Acreditemos nisso, por agora – outras questões se levantam.
Há uma demagogia intrínseca a um cinema que não oferece qualquer resistência ao presente, pois o que é o presente senão o conjunto de proposições maioritárias, “populares”, que sobre ele se tecem, que nos dizem que ele é assim e não pode ser de outro modo? Pablo Larraín, cineasta chileno, tem pelo menos a coragem de não resolver este problema com uma espessa camada de ironia, como o fariam, sem hesitação, muitos dos seus contemporâneos (pensamos não apenas nos Refns ou Sorrentinos, mas também no pior Korine, o de “Spring Breakers: Viagem de Finalistas”). Será, portanto, de outra natureza a distância artificial que “Ema” cria em relação a esta atualidade espectacular que lhe é irresistível. Larraín opta pela via da estetização. Diálogos rebuscados, planos que se anunciam a eles próprios – a sequência inicial é um teaser que por acidente entrou na montagem final –, sentimentos inchados que todavia cumprem a concisão exigida pelo limite de carateres de um tweet… está tudo lá a produzir o artístico, uma espécie de “filtro” a aplicar sobre o presente.
E, no entanto, há aqui gestos, movimentos, verbos ingénuos que atraem a nossa simpatia, ou, no mínimo, a nossa curiosidade. Para se perceber quais são, adiante-se a premissa do filme. É a história de Ema, bailarina, e Gastón, coreógrafo, que adotam um órfão, Polo. Polo porta-se mal – muito mal, como sublinha uma cena gratuitamente escabrosa logo no primeiro ato da narrativa. Ema e Gastón acabam por devolver Polo (e “devolução” é mesmo a palavra usada, ainda que Larraín suspenda o seu significado mercantil, mas já lá iremos). Mais tarde, Ema, a ex-mãe, apercebe-se de que cometeu um erro. O filme descreve, então, o inusitado plano da protagonista para se reaproximar do filho que já não é seu e que, tanto quanto sabemos, poderá ter encontrado uma nova família adotiva.
Escusado será dizer que todos os desenvolvimentos da intriga estão mergulhados num caldo hedonista de sexo e reggaeton. E em “Ema” intriga-nos precisamente isto, este aplanamento dos conflitos narrativos que, longe de constituir uma prova de “mau gosto”, antes atesta a lealdade do filme para com o seu próprio conceito. É inteiramente justo que não haja aqui hierarquia entre temas sensíveis e sequências de dança, que as personagens não existam para além da pele e do tato, que tudo seja, enfim, superficial. Essa é a força, não a fraqueza, do filme de Larraín. Reconduzir todos os problemas familiares e sociais ao corpo e à sexualidade, preferir o ligeiro ao grave – era esta a lógica interna de “Ema” e nunca a pusemos em questão. Aliás, de momento, quaisquer imagens de uma existência menos desinfetada, pré-pandémica se quiserem, são bem-vindas (e terão um dia a sua relevância historiográfica, quando por fim nos tornarmos fantasmas assombrando janelas de chat e transferências bancárias).
Infelizmente, a derradeira perversão desta orgia é Larraín querer que ela seja plena de significado. Instalou no seu centro uma suposta provocação às sensibilidades de classe média (que é capaz de causar sensação nas muitas “sessões com debate” que o filme certamente terá, quando o coronavírus o consentir), mas esqueceu-se de pensar, justamente, a classe e o conjunto de relações proprietárias que esta acarreta. A crítica de Larraín ao modelo da família nuclear patriarcal segue antes a velha fórmula, bem conhecida entre nós, do “agarrem-me que eu vou-me a ele”. Isto é: faz cara feia, atira-lhe uns quantos palavrões e deixa-o fundamentalmente intocado. Se Larraín queria mostrar que um único desejo sincero é quanto basta para fazer ruir o conceito burguês de família, vem muito, muito tarde (lembramo-nos, assim de repente, de Pasolini, que fez isso e muito mais sem deixar margem para a tagarelice interpretativa). E de que serve tanta elaboração narrativa se Polo, o miúdo órfão, surge sempre como mercadoria, coisa a ser detida, transacionada, na melhor das hipóteses partilhada? Não duvidamos da sinceridade humanista de Larraín, claro; mas, como já tantos outros o disseram, por vezes com uma clareza inquietante (veja-se a análise de Sophie Lewis à indústria das barrigas de aluguer), o sentimentalismo e as boas intenções não chegam para abolir uma estrutura familiar determinada exclusivamente pelo parentesco natural. Portanto, e resumindo: se Larraín não pretende ser revolucionário (e está no seu direito), que se abstenha de ser provocador.