Não se encontra no nosso país um festival de cinema comparável ao Fantasporto. Pelo seu percurso, natureza, prestigio e acima de tudo, pela capacidade que teve de se enraizar na cultura de um povo – palavra que deve ser sublinhada.
Na crença generalizada, esta relação com o público parece ser condição sine qua non para garantir a exposição e longevidade de um evento, contudo o mundo real mostra-nos que não é tanto assim, e que com engenho e arte se enchem plateias independentemente da programação levar o cidadão comum a adquirir um bilhete. Parece-me por isso natural que o Fantas, enquanto festival popular, desperte tantas paixões quantas comichões.
Nascido à mesa de um café da Invicta, desde 1981 que não para de nos trazer cinema, e dado o seu peso e peculiaridade, será praticamente impossível encontrar um cinéfilo que não tenha pelo menos uma ou duas histórias do Fantas para contar. Tentarei aqui resumir a minha.
O primeiro contacto aconteceu através de uma peça do Mário Augusto, emitida pela RTP numa tarde perdida em finais dos oitenta. Houve uma imagem que nunca mais me saiu da cabeça: alguém introduzia uma cassete de vídeo no abdómen de um pobre coitado. Só muito mais tarde viria a identificar a cena que me assombrou a imaginação – pertencia ao genial “Videodrome” (1983) de David Cronenberg.
Com a curiosidade espicaçada, tentei convencer o poder paternal da necessidade inadiável de ir àquele festival.
“Esses filmes são muito pesados, não são para a tua idade, vão-te trazer pesadelos…”
A proibição só veio adicionar gasolina ao entusiasmo, e com o passar dos anos lá fui conseguindo transgredir e ver do que realmente se tratava. Em 1994, como um recém adolescente que entrava nas extintas casas de máquinas (que me perdoem as gerações playstation) mergulhado na adrenalina de poder ser expulso a qualquer momento por não ter ainda atingido a provecta idade de 16 anos, comecei a frequentar as sessões desse outro cinema.
Por esta altura já tinha consumido, discretamente, toda a oferta de psicopatas, palhaços assassinos, zombies, bonecos diabólicos e seitas satânicas que os clubes de vídeo ofereciam, considerando-me por isso devidamente inoculado para fazer face à promessa de imagens traumáticas. No entanto, a recordação mais forte que guardo desse tempo não é de nenhum filme gore, mas de um mais apropriado (mas em tudo diferente do que tinha visto até então) filme de animação. Visto numa pequena sala, no edifício da Cinema Novo, situado na Rua da Constituição – que devia voltar a ser um espaço para o cinema! – “Akira” (1988) de Katsuhiro Otomo foi a proverbial pedrada no charco. Mudou para sempre a minha percepção, mantendo-se até hoje como um favorito.
Embora recaia inevitavelmente no registo do discurso nostálgico, de todas as salas por onde o Fantasporto passou, nenhuma recuperou a mística do original Carlos Alberto. Era um cenário perfeito, com uma atmosfera de romantismo decadente, onde normalmente apinhados, aproveitávamos cada intervalo para discutir o ultimo choque. Recordo particularmente uma sessão dupla que me apresentou o trabalho de Michele Soavi, com “Stage Fright” (1987) e o inacreditavelmente subvalorizado “Dellamorte Dellamore” (1994), que valeu a Rupert Everett o prémio para melhor actor de 1996.
Nesse mesmo ano, o Fantas trouxe-nos também “Seven” (1995) de David Fincher, que arrecadou o grande prémio.
Marcante, por razões diversas, foi também uma sessão tripla de Jörg Buttgereit… finalmente fiquei verdadeiramente enjoado e chocado – para estes filmes não havia vacina que me valesse – nada que se compare a um presente, que mostrou que vomitar em público não é exclusivo de bares ou cafés de má fama.
Em 1997 ouço falar pela primeira vez de uns tais Irmãos Waschowski, que viriam a ganhar o grande prémio com o seu thriller de estreia “Bound” (1996), poucos anos depois estariam no topo do mundo com a trilogia “The Matrix”. No ano seguinte são distinguidos Michael Haneke com “Funny Games” (1997) e Takashi Miike com “Fudoh, The New Generation” (1996).
Podemos recuar um pouco mais na história do festival e encontrar uma das suas mais estranhas, e a à luz da filmografia que hoje conhecemos, mais inusitadas “descobertas” – Peter Jackson. O Neo Zelandês, que se viria a atingir fama planetária com a trilogia “O Senhor dos Anéis”, galvanizou o público e júri em 1993 com a comédia gore “Braindead” (1992), que se tornou um dos clássicos do festival.
De realçar da programação do Fantasporto, é sem dúvida a diversidade, capaz de abranger o melhor e o pior, e por vezes mostrar-nos que o pior afinal não é assim tão mau quanto o pintaram. Foi precisamente o que aconteceu quando no rescaldo de “Ed Wood” (1994) de Tim Burton, o festival decidiu mostrar um ciclo dedicado ao “pior realizador de todos os tempos”, que se dividiu entre o Carlos Alberto e o extinto auditório do Instituto Francês. Ver o “Plan 9 From Outer Space” (1959) ou o “Bride of the Monster” (1955) numa sala repleta, a ser projectado em película, nos anos 90, é uma experiencia que dificilmente se esquece. Em 2012 o festival voltou a revisitar a obra do infame autor.
Em 2000, o Fantas trouxe à atenção do público português a obra de um autor brasileiro cujo percurso muito partilha com o de Ed Wood – José Mojica Marins aka Zé do Caixão, atribuindo-lhe o prémio carreira. Instituição da cultura popular brasileira, Mojica é uma dessas personagens que enfatizam o chavão que reza que a realidade é mais estranha que a ficção, como comprova o excelente “Maldito” escrito por André Barcinski e Ivan Finotti. À semelhança do realizador norte americano, também Mojica viu por esta altura reemergir o interesse da comunidade cinéfila internacional pelo seu Coffin Joe confirmando o estatuto de clássicos de série B a títulos tão sugestivos quanto “À Meia Noite Levarei a Sua Alma” ( 1964), “Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver” (1967) ou “Delírios de um Anormal” (1978). Como aspirante a realizador, foi especial poder conhecer e conversar um pouco com esta lenda, a quem sugeri que fizesse um filme passado na ribeira do Porto – e que me pareceu mais assustado com as ideias deste jovem perturbado do que eu com a presença do capeta em pessoa.
Scott, Cronenberg, Lynch, Luna, Greenaway, von Trier, Argento, Natali, Del Toro, Iñarritu… enumerar os realizadores de peso que marcaram presença na programação do Fantas seria tarefa interminável.
É certo que em determinada altura se assistiu a um desvio da premissa do cinema fantástico, o que levou muitos dos fans hardcore a levantarem a voz contra as cedências do festival ao mainstream. Confesso que também eu – qual adolescente que descobre que o seu disco querido e secreto subitamente vai parar ao top 10 – me juntei a esse coro, mas em retrospectiva devo reconhecer que a organização soube manter a promessa de nos trazer sempre cinema bom, diversificado e desafiante. Como em tudo, obviamente também levei as minhas banhadas, mas não foram assim tantas.
O cinema português, mais ou menos fantástico, também teve sempre o seu lugar, e foi abraçado com panoramas que abrangeram produção profissional e académica. É aqui que vejo um dos primeiros filmes nacionais que realmente me marcaram – “Xavier” (1991) de Manuel Mozos com Pedro Hestnes, pérola escondida que enfrentou uma batalha quase interminável, da sua concepção à estreia.
Nos últimos meses foi lançado um manto de suspeição sobre o festival, e não obstante as graves acusações anónimas terem sido arquivadas por falta de indícios e provas, algumas vozes parecem continuar mais dadas à coscuvilhice especulativa do que à celebração do cinema. A percepção histórica deste evento – em Portugal – podia ser bem diferente, não fosse ele um festival do Porto. Não é bairrismo, é realismo. Deixemo-nos de “ouvi dizer” e aproveitemos o privilégio de contar com um festival como este. Temos outro à porta. Quem vem?
José Alberto Pinheiro
realizador e professor do ensino superior