Superman – A Angústia do Escuteiro Extraterrestre, por José Alberto Pinheiro

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Embora as linhas mestras da matriz de género já estivessem a ser desenhadas nas páginas das revistas pulp há vários anos, é com a criação de Jerry Siegel e Joe Shuster que o conceito de super-herói penetra  no imaginário popular. Mas o nome, antes de ser de herói, foi de vilão telepata – nas páginas de uma fanzine que os autores publicaram nos tempos de liceu. Nos idos de 1933, estariam tão longe como qualquer outro, de imaginar um extraterrestre Apolíneo, com vestes de inspiração circense a rasgar os céus das cidades do futuro.

Passariam cinco anos até a personagem, que devia ao antecessor apenas o nome, explodir nas páginas da revista Action Comics #1 e virar do avesso a paisagem cultural do século XX.

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A fantasia escapista, filha da grande depressão, estava destinada a encontrar um exercito de argumentistas e desenhadores que o tornariam num ícone planetário, capaz de competir com a popularidade de ancestrais figuras religiosas. Embora seja quase impossível de detectar entre a ingenuidade das primeiras centenas de pranchas que alimentaram a ascensão do comic book americano, esta mesma dimensão religiosa poderá ser facilmente identificada com uma análise básica do mythos a que o filho de Krypton deu corpo.

Superman and the Mole Men (1951) é a primeira longa-metragem da personagem, sucedânea do popularíssimo seriado com George Reeves no papel de Clark Kent e respectivo alter-ego. Não poderia ter sido escolhida melhor década para enfatizar o lema – Truth, Justice and The American Way!

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Os anos cinquenta conviviam bem com a necessidade de fé e abstracção exigida ao público, quando este confrontava tamanha fantasia trazida à vida com os limitados meios que a sétima arte tinha ainda ao seu dispor. Contudo, o mesmo não se poderia esperar das décadas que se seguiram, nas quais podemos observar a título de exemplo, a forma como  Batman foi “forçado” a alimentar-se da paródia de si próprio para sobreviver.

Convenhamos que produzir um efeito imersivo para um espectador que se confronta com um homem de pijama a voar entre os arranha-céus da metrópole é tarefa hercúlea para qualquer um, mas Richard Donner era um realizador destemido…

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Em Dezembro de 1978 chega às salas Superman, uma aposta de alto perfil com argumento de Mario Puzo e interpretações de Marlon Brando, Gene Hackman e Christopher Reeve – que por mais de uma década seria o Super-Homem que todos conhecemos. Reeve é o escuteiro simpático, que numa cultura pré-anabolizante, era mais que suficiente para convencer miúdos (sim, os miúdos ainda eram o principal alvo deste nicho) e graúdos.

O filme foi um sucesso de crítica e bilheteira, abrindo um raio de optimismo para a entrada nos anos oitenta e recuperando, em consonância com as tendências políticas em ascensão, o desejo nostálgico de voltar à alegada ingenuidade da América dos cinquentas.

O sucesso da película origina mais três, que escorregam numa curva descente, culminando no duvidoso Superman IV: The Quest for Peace (1987), produzido pelos lendários Menahem Golan e Yoram Globus. O insucesso do filme deve-se em grande parte à profundidade da nemesisNuclear Man! Que apesar de tudo, devemos reconhecer que tem um bronzeado espectacular.

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Em 2006, altura em que a tecnologia estava já suficientemente desenvolvida para exigir um pouco menos de esforço aos espectadores, e em plena febre do ressurgimento em força da figura do super-heroí no cinema, o aclamado Bryan Singer ensaia a ressurreição deste deus, no que se esperava como um dos grandes acontecimentos do cinema popular da década.

Superman Returns tenta, com todas as forças, recuperar o legado deixado por Reeve e Hackman, evidenciados pelas performances de Brandon Routh e Kevin Spacey, mas resulta num filme tépido e deslocado do seu tempo. Este Super-Homem, embora aparentemente tivesse todos os ingredientes para tal, não voou. Se Singer não conseguiu, quem estaria à altura do desafio?

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Em 2013 estreia Man of Steel de Zack Snyder, realizador familiarizado com o universo da banda desenhada, com provas dadas com a inovadora adaptação de 300 (2007) de Frank Miller e da tarefa sobre humana de trazer à tela uma versão convincente de Watchmen (2009), a partir do clássico de Alan Moore. Não tendo conseguido abarcar a complexidade da obra original, o filme obteve uma excelente recepção e afirmou Snyder como um nome a ter em conta no futuro de Hollywood.

Apesar do sucesso comercial, Man of Steel polarizou a opinião dos fans. Nunca tínhamos visto um Super-Homem tão dark, e muitos são os que legitimamente questionam a necessidade de descaracterizar a leveza dos céus azuis do filho de Kypton e a forma como esta reinterpretação colide com o legado simbólico da personagem.

Os avozinhos do género, Super-Homem e Batman, sempre resultaram num quadro de Yin e Yang, para muitos este Yang perdeu-se nas paisagens soturnas de Snyder e na narrativa barroca de David S. Goyer e Cristopher Nolan.

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Em 2016, os avozinhos confrontam-se pela primeira vez no grande ecrã, em Batman v Superman: Dawn of Justice. Estreado no fim de semana passado, é já um caso paradigmático sobre o fosso existente entre crítica e o público. Devastado pelo primeiro, é levado em ombros pelo segundo, com o sucesso de bilheteira que em poucos dias o levou a ultrapassar a marca dos 400 milhões e uma campanha anti crítica sem precedentes nas redes sociais – não obstante a maré de humor com os vídeos do Sad Affleck.

Dependendo do lado da barricada em que nos posicionamos, podemos argumentar que o temido genocídio cultural preconizado por Iñárritu já aconteceu e estes são os seus frutos, ou correr para o outro extremo, e afirmar que temos uma crítica fossilizada, que coloca um ponto de interrogação na sua própria sobrevivência enquanto sector relevante para a plebe e afins.

Independentemente de todos os conflitos imagináveis, há um facto evidente e incontornável: estamos perante uma nova era do cinema popular. Nesta, os heróis que outrora habitavam as páginas coloridas de revistas impressas em papel barato, desempenham um papel cimeiro. Até quando durará a febre? Será que até lá se voltará a encontrar um lugar suficientemente ingénuo para abraçar o sorriso paternalista de um deus solar? Ou tal como aconteceu no principio desta nossa história, não podemos sequer imaginar no que o nosso escuteiro extraterrestre se irá transfigurar?

José Alberto Pinheiro

realizador e professor do ensino superior

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