“Hard Truths” – O peso do que não se diz

"Hard Truths" (Verdades Difíceis, 2024), de Mike Leigh "Hard Truths" (Verdades Difíceis, 2024), de Mike Leigh
"Hard Truths" (Verdades Difíceis, 2024), de Mike Leigh

Se há uma verdade difícil no cinema de Mike Leigh, é esta: a complexidade humana raramente se presta a arcos narrativos redentores. Após dois projetos de fôlego histórico e biográfico — “Mr. Turner” (2014) e “Peterloo” (2018) —, Leigh revisita um terreno que já provou dominar: o drama íntimo, marcado pelas fricções do quotidiano e pela complexidade subjacente às relações humanas. “Hard Truths” (“Verdades Difíceis”) representa este regresso à ficção contemporânea, encerrando um hiato de seis anos por parte do cineasta e nascendo das limitações de uma das suas produções mais modestas em termos orçamentais. Contido na escala, mas não na ambição, o filme concentra-se no essencial — e é nesse núcleo vital de tensões familiares que encontra o seu fulgor.

Pansy, interpretada por Marianne Jean-Baptiste, é uma mulher negra britânica de meia-idade cuja dor não encontra válvula de escape senão na agressividade constante. Sem espaço para eufemismos, ela recusa o mundo — e este parece retribuir com uma frieza indiferente. Vive nos subúrbios londrinos com o marido e o filho, ambos resignados ao peso emocional da sua presença, enquanto ela se debate com um quotidiano que parece sempre escorregar entre os seus dedos.

Leigh não procura rotular Pansy com termos clínicos da psiquiatria. Ainda assim, a construção cénica e a sua atuação deixam transparecer um sofrimento mental profundo — luto, ansiedade, perturbação obsessiva — que se reflete na rigidez dos gestos e na claustrofobia da casa, filmada com uma contenção milimétrica por Dick Pope, colaborador habitual do realizador. A luz branca e fria inunda os espaços interiores, reforçando a estagnação emocional da personagem, enquanto o silêncio daqueles que a rodeiam revela uma resignação que, apesar de tudo, é amor.

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Mas “Hard Truths” não se limita a isolar a sua protagonista num ciclo de raiva e dor. Há uma outra figura feminina: Chantelle, interpretada por Michele Austin, irmã mais nova de Pansy, cabeleireira, mãe solteira e mulher luminosa. A sua presença não serve apenas para evidenciar o contraste. Ao reunir a dupla que já partilhou o ecrã em “Secrets & Lies” (1996), Leigh constrói uma relação na qual explora os laços ambivalentes que ligam duas irmãs que partilham mais do que gostariam. Se Chantelle representa a possibilidade de um outro caminho, não o faz com superioridade moral, mas com uma compaixão prática.

Ao contrário do que o título poderia sugerir, certezas duras e definitivas, “Hard Truths” não é um manifesto, mas um gesto de escuta. Leigh, fiel ao seu método de criação colaborativa — sem guião prévio, com construção de personagens em ensaio conjunto com os atores —, desenha um filme que se organiza a partir do comportamento e não da intriga. A opção por uma estrutura livre, quase sem progressão narrativa, é coerente com esta abordagem e com a ambição de captar sem dramatizar. A observação é finíssima, mas, por vezes, prolonga-se em variações demasiado próximas, como se a mise en scène insistisse numa ideia até ao limite da repetição. Contudo, é por meio deste recurso que Leigh consegue afirmar com tanto sustento uma falência estrutural de uma sociedade (e talvez de uma família) em responder ao sofrimento que não se expressa segundo os códigos da ternura.

Jean-Baptiste molda uma personagem que inicialmente se apresenta com traços quase caricaturais — uma impressão amplificada pela leveza cómica que atravessa o filme. Porém, essa aparente superficialidade é apenas a primeira camada de uma construção cuidadosa: progressivamente, a atriz desvela a complexidade emocional e as fissuras interiores de uma personagem fragmentada e insuportavelmente humana. É neste equilíbrio delicado entre o trágico e o cómico — onde o humor por vezes surge, cruel e inesperado, como um contraponto à dor — que Leigh demonstra a sua mestria em captar a teia das emoções humanas sem cair no simplismo.

Visualmente, “Hard Truths” recusa o impacto imediato, preferindo uma câmara que observa, mas sem impor, enquanto a montagem opta por uma fluidez contida, acompanhando os estados emocionais das personagens com uma naturalidade quase imperceptível. Contudo, essa escolha cria um ambiente que por vezes parece excessivamente estéril e despojado — um espaço quase clínico que reflete a contenção emocional das personagens. É uma escolha coerente com o retraimento afetivo das figuras em cena, mas que, em certos momentos, parece esvaziar o filme de uma tensão sensorial mais vívida. A música de Gary Yershon, discreta e melancólica, adensa esta atmosfera delicada sem nunca a sublinhar de forma enfática.

Leigh não nos oferece resolução, nem nos ilude com a possibilidade de catarse. Em “Hard Truths”, o sofrimento não se dissipa: instala-se e arrasta-se, sem clímax nem consolo. Amar, aqui, é uma tarefa opaca, extenuante e, por isso mesmo, real. É nessa fidelidade ao desamparo, nessa recusa de nos dar aquilo que esperamos da ficção, que o filme encontra o seu ponto mais agudo. Porque há verdades que não se dizem: apenas se suportam. E Leigh, mais do que enunciá-las, obriga-nos a habitá-las.

"Hard Truths" (Verdades Difíceis, 2024), de Mike Leigh
“Hard Truths” – O peso do que não se diz
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