O corredor que prossegue e curva, divergindo para um outro compartimento (um que não se vê) e que, percorrido pela câmara, num lento travelling, enforma um movimento duplicado, uma citação estética e técnica, uma referenciação do referencial maquinal e visual, que réplica e intensifica, transpõe e recoloca uma ideia de cinema, um plano que é, na verdade, dois e dois planos que neste se fazem um: este que é o agora e o outro o é enquanto foi. Cita “High Life”, de Claire Denis, o mesmo plano-movimento do “Solaris”, de Andrei Tarkovsky.
O binómio citação/replicação não é imitação, mas o rejuvenescimento de modos de filmar que são do domínio do mais absolutamente cinemático: aqui, em Denis, é (e foi) como o foi (e é) em Tarkovsky, a gradação no espaço para criação de um olhar, de um querer ver, de um expectar acerca do que está para lá da curva. É a imagem que fica por registar, aquela que a câmara não filma, aquela que o cineasta não deixou filmar.
Se Denis cita Tarkovsky, com ele fala e com ele partilha o movimento de câmara que é mútuo no seu propósito: não segue para a direção para a qual se quer ir (e que chama), mas para a outra, aquela que servirá para mostrar um outro algo, uma outra forma, um outro corpo, um outro cinema, uma outra tensão, um outro não-expectável: Denis curva à esquerda e apresenta Monte (Robert Pattinson) e a infante Willow (Scarlett Lindsay), pai e filha, perdidos no espaço, a caminho de algo, mas também no fim de tudo, afastados de todos, numa viagem com e sem destino, duas vidas suspensas na própria gaseificação sideral do espaço-tempo. Condenados a viverem e a soçobrarem no tempo e a sentirem-no, a nele se manobrarem.
Se a sua viagem é um ato suspensivo, força de uma deriva que é ela já deriva de outros “corpos-vida” que desapareceram, o é também enquanto uma desesperança esperançada, a de que seja possível encontrar, no vácuo, alguma da humanidade que se possa ter deixado para trás, numa mesma Terra em que já dela pouco se encontra e da qual Monte é já último refugo. De um abjecto e inominável criminoso se fez um derradeiro “inseminador-criador”, um humano inumano que cria nova forma-corpo de um(a) humano(a) anti-gravítico(a), mas gasoso(a): assim é Willow, uma outra(o) humana(o), um pós-humano, gerado para lá da Terra, mas agora querendo estar na terra do jardim espacial, mais biológico, mais limpo, mais absolutamente terroso do que o original que se deixou para trás.
O que é Willow senão uma (re)nascença do (novo) humano, totalmente inocente, novo sangue menstrual de um novel e original “corpo-mulher”, criado no “espaço-vácuo”, mas não vazio em si, antes promessa de uma outra singularidade. É positivo que gera do negativo: todos os outros já não existem, flutuam congelados no espaço.
Um a um, foram morrendo, na exata proporção da crescente tensão psicomotora e psicossexual: a locomoção no espaço equivaleu a uma suspensão/paragem no “cubo-nave”, a um fechamento no movimento. O avanço no espaço-tempo, por mais avassaladoramente rápido correspondeu a um estado de assento e inércia repetitiva e onde a impossibilidade do toque corporal com o outro impediu a satisfação das pulsões da carne pela carne.
Mesmo a ejaculação dos fluidos por automasturbação na Fuck Box não permitiu a distensão, antes a recentrou como sintoma de um mal mais perverso e penetrante: a inseminação mecânica, de órgão para frasco, e de proveta para útero ainda mais acresceu à falta de contacto íntimo e de valência natural. Daí a pulsão da morte, o querer matar e o querer morrer. Violações do corpo. Ataques. Rasgamento da carne. Término de vidas. Diferenciações, no entanto: Boyse (Mia Goth) preferiu a explosão molecular, supressão expansiva do corpo. Tcherny (André Benjamin) enterrou-se no jardim espacial, decomposição transformativa da carne. Dibs (Juliette Binoche) escolheu o gelo absoluto e a flutuação eterna no vácuo. O mesmo “espaço-vacuidade” em que Monte fez vogar os restantes corpos mortos.
Se assim Monte passou a ser capitão e tripulante, conservador e pai, o fez pela necessidade de oxigénio a crédito, só conseguido através do manter constante, dia a dia, dos sistemas de navegação e avanço da nave. Uma conta de deve e haver, uma contabilidade da sobrevivência no éter espacial, um contrato-promessa de morte para o florescimento e crescimento de um “corpo-vida”: Willow (Jessie Ross).
A aproximação ao objeto final da expedição, o buraco negro da ultrafinalidade e da ultra-integração, não causa dúvidas e não deixa funções matemáticas por resolver. Aí, o avanço é inexorável. Se assim se o pode chamar. É a vetorização máxima, a absoluta seta, não mensurável, sem equações, sem demonstrações. É isso mesmo “High Life”: o “anti-Interstellar” (Christopher Nolan). Não há resoluções, não há fazer ver, não há sentido que se possa explicar por mensagem e cifra. Há só o ir, o tremer, o refazer, o reformar: os corpos de Monte e Willow esticam para o infinito, de biológicos passam a gasosos, da carne passam para algo absolutamente sideral, já do domínio do incógnito. Tornam-se linhas? Formam-se como átomos puros? Não se sabe.
O filme acaba nesse fim, fica o ecrã negro. Um mapa negro e vazio, como se olhássemos para um espaço sem estrelas e sem luz. No entanto, e neste aparente ultrapessimismo, Claire Denis não deixa de lembrar que, tal como em “2001 – Odisseia no Espaço” (Stanley Kubrick), uma nova humana, uma nova Criança das Estrelas havia já nascido.