Existem duas coisas que me espantam completamente: a beleza que pode estar contida numa obra de arte, e a capacidade que os moralismos têm de cegar as pessoas para a beleza. Mesmo que retirássemos todo o conteúdo narrativo do último filme de Todd Phillips, ele ainda permaneceria um gesto em si mesmo, capaz de provocar um puro deleite estético. Não estamos perante um filme formalista, que se possa reduzir a um invólucro adocicado, como nos hodiernos exercícios de culinária estética, onde se cozinham as formas para lhe trincarmos o açúcar. Em “Joker”, é a estranheza que nos arrebata o palato, sem em nenhum momento o agredir; e isso, só é possível quando existe um espaço onde conseguimos ver a beleza em abertura para acolher a história e assim a salvar. Não se trata apenas de uma visão moral que se transmite ao espectador sobre determinada personagem, a sua história, o seu retrato pessoal ou social, trata-se antes de uma superação moral, de apresentar uma zona de indeterminação onde a imagem se torna algo vivo, numa constante vibração que vai espalhando as suas ressonâncias dentro da nossa consciência.
A história foca-se na vida de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um comediante que tem o sonho de fazer stand-up comedy, mas que enquanto essa possibilidade não aparece, vai fazendo alguns trabalhos como palhaço. Porém, a periferia de Gotham City não tem nada para lhe oferecer a não ser a violência gratuita de estranhos, a cretinice dos colegas de trabalho e uma solidão absoluta.
Numa primeira impressão, esta personagem parece ser apresentada como vítima da sua história de vida, das condições sociais que a circundam; parece que o argumento entra num simples apontar o dedo para alguém que sofre pelas mãos dos carrascos sociais que o rodeiam. Esta é a leitura mais superficial que conseguimos fazer do filme: uma leitura meramente sociológica, onde é visível uma personalidade forjada, por um lado, pela sua condição psicológica e por outro, pelas relações sociais que essa condição vai produzindo. Mas “Joker” vai muito mais além, porque toda esta miséria social identificável entra dentro de um todo que se faz imagem, e onde esta, por sua vez, se torna gesto.
Dentro desse gesto, entra o corpo esquelético de Fleck como signo de um estado existencial que vive no limiar entre a sua parca participação no mundo e a sua decomposição iminente. O corpo de Joaquin Phoenix é reduzido a uma forma num processo de desaparecimento, e nos seus contornos podemos vislumbrar uma morte iminente, como que a chegada de um estado gasoso que acabará por dissolver o seu ser. O corpo de Phoenix não deixa de actuar dentro desta dimensão estética, contendo tanto as manifestações comunicantes enquanto rosto, de onde vemos emanar os sentimentos que vão actuando no seu corpo, como também uma outra dimensão afectiva, mais pura, onde se expressam intensidades que não podem ser individualizadas, e que escapam do próprio corpo para se espalharem pelo espaço. Neste ponto, percebemos a proliferação do sentimento de revolta, a adopção das máscaras pelos cidadãos de Gotham City e a consequente escalada de violência que começa a espalhar-se pela cidade, que irá gerar um estado entrópico cuja tendência natural é a sua intensificação caótica.
A gargalhada patológica é ainda pulsão contida, que anuncia o corpo como prisão de uma força destrutiva que a personagem aprendeu a tentar conter e esconder. Na cena dos assassinatos no metro, essa pulsão atinge o seu ápice, ao mesmo tempo que é exorcizada após os disparos. A gargalhada muda, deixa de ser contida para reflectir a pulsão livre, que passou a exercer a sua força destrutiva pelos espaços da cidade. A normalização comportamental que a sociedade exige, faz com que, sobre a sua condição mental, se exerça uma força que castra toda a sua iniciativa, abafando a sua singularidade. O sonho passa a ser escape necessário dessa realidade que não se lhe abriu, da qual ele se encontra excluído; o afecto, que sempre esteve ausente e do qual necessita para sentir que existe em meio de uma humanidade que o acolhe, passa a ser alucinado. Toda esta pressão que se exerce no seu ser acaba por explodir, por sair de cima dos seus ombros. E, neste momento, o seu corpo encontra um espaço que nunca havia tido, e as belíssimas cenas de dança têm lugar. O corpo dança o seu triunfo, por conquistar esse espaço que nunca havia tido; explode as barreiras de um espaço abismal, que se situa além da própria exclusão, onde era obrigado a esconder-se.
Mas, este espaço novo, não é apenas o resultado de uma força moral que se impõe violentamente, é uma manifestação estética pura; são partículas que vibram para que, em nós, se criem ressonâncias. Os cenários, as cores, a música, tudo isso se conjuga para que a nossa alma se torne orquestra e nos conheçamos enquanto sinfonia (nas palavras de Fernando Pessoa). É precisamente na criação dessa consciência intensiva que reside o meu fascínio: o filme cria, em nós, através da experiência estética que nos proporciona, a pura dissolução do sujeito reificado que nos é apresentado. Ler o filme apenas nessa dimensão moral não é mais do que repetir a mesma forma de pensar daqueles que rodeiam a personagem. Algo começa a dançar em nós, e isso acaba por dar a ver um devir que redime uma realidade que não paramos de coisificar.