Não ter memória é melhor ou pior que ter memórias que não correspondem à verdade?
Michel Franco não responde nem aparenta querer responder a essa pergunta, está muito mais interessado naquilo que liga as pessoas a nível sensorial, emocional. Por isso, mais do que uma análise, “Memória” é uma terna e, por vezes, cruel experiência humana.
Sylvia (Jessica Chastain) é uma mãe solteira assombrada pela memória do abuso sexual, Saul (Peter Sarsgaard) é o homem que já teve a vida facilitada, mas cuja memória se perde de dia para dia.
No nevoeiro terrível da demência, Saul redescobre com Sylvia o simples prazer de gostar de alguém, sem ter de pensar sobre o assunto, tomar notas num caderno ou reprimir-se porque a demência pressupõe uma infantilização que nem um nem outro daqueles adultos está disposto a permitir.
É a partir deste amor que entra em jogo a verdadeira demência: a da sociedade do conforto e do bem estar forçados. A família de Saul tomará controlo da sua vida como se a sua vontade terminasse onde termina a sua memória e a família de Sylvia resistirá a dar crédito às suas confissões, tudo em nome das aparências ou da necessidade de negar a imperfeição, o feio, aquilo que não fica bem na fotografia.
“Memória” é um muito belo exercício sobre a identidade enquanto se perdem as características que fazem de alguém verdadeiramente alguém com existência perante a sociedade. A memória é uma construção imperfeita e as imagens tomadas por verdadeiras são apenas uma parte de uma verdade que tem tantos lados como pessoas envolvidas.
Se Saul não tem identidade, terá direito a ser feliz? E poderá a sua família agir em nome de um fictício bem estar roubando-lhe o poder de decisão? O filme é um gerador de perguntas, embora no seu centro se encontrem muitas que ficarão sem resposta e isso, em tempos de verdades absolutas, é um balão de ar fresco, mesmo que não puro.
Sylvia, por exemplo, ultrapassa o trauma em parte falando sobre ele, mas não existe um verdadeiro encerramento, um final feliz. Michel Franco dá ao espectador um pouco das vidas dos personagens com os seus variadíssimos traumas e verdades até então inconfessáveis, mesmo que essas pareçam conter vários ângulos, não está necessariamente interessado em construir um mundo cor de rosa.
A ação encontra-se do lado de quem vê: é um filme romântico depressivo? É constante angústia ou fonte de amor onde ele é possível, aceitando-o tal como é? Sylvia e Saul partilham um amor possível que lentamente se revela ser a simples ligação física e emocional entre duas pessoas, independentemente de como as suas memórias (ou falta delas) lhes dão forma.
Nos tempos que correm, “Memória” é ainda, se o espectador assim quiser, um importante testemunho de como rememorar é o antídoto certo para evitar a repetição do erro ou até a presença abusiva de certas forças que agem em nome um bem que não representa necessariamente o bem comum.
A única falha de “Memória” talvez seja não ter aprofundado um pouco mais quer a história de fundo de Saul, que os contornos do trauma de Sylvia. Há até uma cena em que a irmã de Sylvia, Olivia (Merritt Wever) é confrontada por Anna (Brooke Timber), a filha de Sylvia, e o diálogo que se estabelece é tão somente acusador e simplista, um pouco na senda dos novos e benéficos tempos, mas sem o mérito de trazer algo de novo a esse necessário e aberto diálogo. Mereceria a pena desenvolver melhor o lado de Olivia e mesmo da matriarca da família, Samantha (Jessica Harper), a rainha do giallo de Dario Argento – não será justo relembrá-la apenas por esta sua faceta, mas no contexto do filme parece irónico.
Nesse aspeto, existe uma certa simplificação ou a escolha de não aprofundar demasiado todas essas tramas secundárias. Pode escolher-se acreditar que se tratou de uma forma de colocar no centro o desenvolvimento de memórias melhores que as do passado, ainda que efémeras para Saul.
