“Mosquito”, de João Nuno Pinto, o primeiro filme português a abrir um dos chamados festivais internacionais classe A, rapidamente se tornou num dos trabalhos mais badalados desta edição do Festival de Roterdão. O caso não é para menos, apesar de alguns desaires o mais recente filme de João Nuno Pinto não tem qualquer tipo de paralelo na história do cinema português, habilitando-se a receber o rótulo de “Apocalypse Now” da nossa cinematografia. Mas mais importante ainda será o facto de que se trata também de um documento essencial para o processo de reinterpretação da “aventura” portuguesa em África, missão que nunca estará isenta de percalços e controvérsias.
O filme tem como foco principal o protagonista Zacarias (João Nunes Monteiro), um rapaz de 17 anos que embriagado de um patriotismo cego e uma sede de glória que acaba por se alistar para combater nos campos europeus da primeira grande guerra em 1917 (não falta por aí quem se desdobre em paralelos com a obra de Sam Mendes, mas esse é um caminho condenado ao fracasso, já que as semelhanças são escassas). Porém, o destino envia-o para Moçambique, onde a autoridade do império nacional é posta em causa pela chegada das tropas alemãs. Em vez de prosseguir com os seus camaradas, vê-se “aprisionado” a uma cama. O primeiro embate não é com alemães, mas sim com a malária. Após a recuperação, inicia-se então uma autêntica “peregrinação” com vários encontros e desencontros, onde Zacarias segue a caminho da frente de guerra, acompanhado apenas por dois negros, a sua sanidade em perigo e uma enxurrada de mitos.
O tom de “Mosquito” revela-se logo à partida e, diga-se, de forma irrepreensível. Assim que a embarcação de Zacarias se aproxima da costa, é recebida por um oficial português e um grande grupo de negros. Quando do barco se ouve a pergunta: “Onde está o molhe para desembarcarmos?”, a resposta é contundente: “Não há molhe, mas temos pretos”, seguindo-se uma encenação meticulosa onde todos os soldados são carregados em ombros pelos negros obedientes, de forma a não molharem nem a ponta dos pés.
Todos aqueles que sempre sentiram a falta de um retrato autêntico da experiência imperial portuguesa e, em particular, da relação entre os portugueses e os povos nativos, encontrarão uma resposta complexa, mas inevitavelmente satisfatória em “Mosquito”. A inicio desmascara-se esporadicamente, de forma habitual, poluída pela perspetiva eurocêntrica dos protagonistas e o contexto em que se desenrola a narrativa. A este nível destaca-se a personagem do Sargento Justino (João Lagarto), o verdadeiro líder da expedição e quem mais se desdobra em monólogos que tocam em vários dos clássicos do lusotropicalismo e da visão mais grotesca do imperialismo. Para Justino, a relação com os negros é simples: os brancos são os leões, donos e senhores de uma selva repleta de bestas perigosas e matreiras, sempre prontas a atacar os mais desatentos e enfraquecidos (aliás, uma metáfora que lhe saiu extremamente cara).
Durante grande parte do filme, os africanos pouco mais são que cenário, já que o filme foca-se repetidamente na experiência de Zacarias, que, tal como Charles Marlow em “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, terá de enfrentar uma dura batalha com a imensidão de África e a natureza agreste do espaço. Aqui o filme torna-se algo redutor, embarcando em vários dos clichés do género.
Mas “Mosquito” recompensa os mais resistentes, já que se recusa a ser mais uma oportunidade perdida no trajeto recente do cinema português e, eventualmente, enfrenta a grande questão cara a cara, quando Zacarias fica refém de uma comunidade de mulheres “perdidas” na savana.
Do nada, os papéis revertem-se, Zacarias banaliza-se e são os africanos (nesta caso as africanas) que se humanizam e se revelam como extremamente complexas, “vitimas” de semelhantes jogos de poder, das suas tradições e do confronto civilizacional que se desenrola no mundo real. É nesta fase que “Mosquito” se agiganta e se completa e à medida que o protagonista encontra o seu momento de redenção, ficamos com a sensação que num par de cenas o cinema português deu também ele passos gigantes.
Se a nível temático “Mosquito” é ousado, a nível técnico não é menos destemido, chegando mesmo a ser exibicionista, dada a quantidade de truques, experimentações e ensaios que o cineasta arrisca. Não haja ilusões, trata-se de um filme de peito cheio, deslumbrado consigo próprio, que sofre dos seus exageros, mas que também se amplia quando acerta no alvo.
O trabalho do diretor de fotografia, Adolpho Veloso, é verdadeiramente sensacional, inventivo na forma como brinca com a luz da paisagem africana, oferecendo ao filme um sentido orgânico, empoeirado e soado, que em muito contribui para estreitar o laço entre a experiência de Zacarias e a experiência da própria audiência. A construção narrativa joga também um papel de louvar neste jogo, numa viagem temporal, repleta de avanços e recuos cirurgicamente escolhidos e interpelados por momentos de delírio que desempenham a sua função de desorientação de forma impecável.
Justo também será apontar um destaque para o jovem João Nunes Monteiro no papel de Zacarias, que nos apresenta uma performance rigorosa e raramente desfocada da sensação de deslumbre e desnorteio da sua personagem. O mesmo não se poderá dizer de alguns dos seus camaradas, que revelam desequilibrados numa teatralização demasiado encenada, que desvirtuam frequentemente este “Mosquito”.
Mas talvez o mais desadequado será mesmo o trabalho de som, em particular a banda sonora, que vive em quase perpétuo confronto com o resto da obra. No papel compreende-se que um filme tão aventureiro tente ser inovador a este nível, mas o resultado é no mínimo perturbador. Chegamos mesmo a escutar uma batida de house music enquanto Zacarias caminha pela mata Moçambicana. Se por um lado sentimos a mesma desorientação que se esbate sobre o protagonista, a experiência leva-nos por caminhos tão insolentes que acaba por resultar num enorme e desnecessário obstáculo.
Longe de ser um filme perfeito, “Mosquito” é de tal maneira denso e ousado que exige vários visionamentos e que, no final, lhe seja feita justiça. É uma obra complexa, perseverante e corajosa. Assume os riscos, perde-se e encontra-se neles. Mas, acima de tudo, é manifestamente um filme necessário. Está “condenado” a abrir horizontes, declara-se contra os mitos que persistem e os brandos costumes e revela-se pronto a confrontar-se com a inevitável oposição. Ainda bem que vem encorpado e robusto. Chega no momento certo.