25 de Abril

“O Cavalo de Turim” e o peso da existência humana

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Ohlsdorfers Tochter (Erika Bók) auf dem Weg zum Brunnen

Em 1889, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche estava em Turim quando presenciou os violentos açoites desferidos a um cavalo por parte do seu dono. Nietzsche atirou-se ao pescoço do animal, numa tentativa de o defender, e pouco depois colapsou no chão. Durante dois dias ficou deitado num divã em silêncio, até que proferiu as palavras “Mutter, ich bin dumm” (“Mãe, eu sou estúpido”). Um mês após este incidente, Nietzsche foi diagnosticado com uma doença mental que o deixou de cama e sem falar durante os onze anos seguintes, até à sua morte em 1900. A história do filósofo alemão é famosa, e assim sendo, Béla Tarr levanta a questão: o que terá acontecido após aquela situação na Piazza Carlo Alberto, em Turim, ao cavalo e ao seu dono?

O filme ficcionaliza seis dias na vida do agricultor, Ohlsdorfer (János Derzsi), da sua filha (Erika Bók) e do cavalo. Vivem numa casa antiga, isolados da civilização e de uma forma muito rudimentar (o que acaba por ser normal, visto a história passar-se em 1889). Contudo, o cenário é invulgar. O animal está velho e cansado, talvez sinta a sua hora a aproximar-se, deixa de querer trabalhar e mais tarde de ter apetite. O sustento daquela família depende do cavalo, no entanto, as tentativas de o fazer voltar ao ofício se revelam infrutíferas. E o vento, o vento não pára de soprar, seja de dia ou seja de noite.

Após a introdução inicial do narrador, não existe o som de uma voz humana durante os próximos vinte minutos de filme, e a primeira fala é “está pronto”, proferida de maneira indiferente e resignada pela filha, após colocar as batatas na mesa. Existe um tema musical que acompanha a obra, mas o principal som é o do vento. Constante, incessante, quase bíblico – um vendaval que não dá tréguas. É o presságio da tempestade que está a chegar àquela casa. Foi essa impressão que me invadiu, que começou por me deixou angustiado pelo destino das personagens. Contudo, a insistência deste elemento acabou por ter um efeito apaziguador – se o vento não terminou ainda é porque a tempestade ainda não chegou, então ainda há esperança.

Os movimentos de Ohlsdorfer são limitados, não tem a capacidade motora de mover o seu braço direito. Assim sendo, acaba por ser a sua filha a ajudá-lo a fazer (quase) tudo. Ações rotineiras como vestir as pesadas roupas são feitas sempre com auxílio. Recai sobre a jovem ir ao poço buscar os mesmos dois baldes de água, servir ao pai os mesmos dois copos matinais do que provavelmente é pálinka, uma bebida típica da Hungria, cozer duas batatas, uma para cada um, comidas com a mão e a única refeição do dia. Tudo isto é repetido no decorrer da obra, todos os dias. São ações como as que repetimos no quotidiano, neste sistema automatizado em que vivemos.

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Há apenas duas interações com outros seres humanos: a primeira com um vizinho, Bernhard (Mihály Kormos), que traz consigo o momento mais nietzschiano do filme. Num extenso monólogo, este homem que veio buscar álcool, conta que a cidade vizinha caiu na degradação, mas não só a cidade, também a civilização humana está degradada. Ohlsdorfer não dá importância a este aviso de tom profético, proferindo duas ou três frases secas como resposta. A outra interação é com um grupo de ciganos que viaja rumo à América, e que se oferecem para levar a filha de Ohlsdorfer com eles, mesmo este ordenando-a a expulsar aquela trupe da sua propriedade. São o único símbolo de liberdade ao longo de toda a obra. Procuravam água para beber, mas tal foi-lhes negado. Tarr, como que para provar um ponto, mostra o poço no dia seguinte ao deste encontro inesperado, e o poço está seco. Sem esperança de continuar ali, pai e filha fazem malas, partindo em busca de outro local onde a prosperidade seja possível, e de facto encontram uma casa onde páram e descarregam os seus pertences – é a mesma de onde partiram pouco antes.

Béla Tarr disse que o filme aborda “o peso da existência humana”. Uma marca de estilo bem patente do realizador húngaro é o uso de takes longos – as duas horas e meia de filme consistem apenas em trinta no total. Esta escolha por parte de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky (esposa e colaboradora de longa data nas obras do marido, nos cargos de co-realização e montagem), faz com que o peso da passagem do tempo aumente constantemente. Para referência, segundo dados de 2014, a média por take era de dois segundos e meio, e em 1930 a duração rondava os doze segundos. Cada filme é um filme, e há uma justificação para as escolhas de cada realizador e montador. Serve esta curiosidade como nota indicativa sobre o que podem esperar os interessados em ver O Cavalo de Turim.

Um espectador não habituado a este registo cinematográfico pode perguntar “onde está o interesse numa cena de cinco minutos onde vemos um cavalo parado e a sua cuidadora a dar-lhe palha”? No entanto, visto pelo prisma do “peso da existência humana”, esta cena tem toda a importância (tal como outras no filme que se alongam por mais tempo ainda). Não serão esses cinco minutos a duração normal que levaríamos a executar tal tarefa? O peso de que Tarr fala existe no filme devido à representação fiel da passagem do tempo no ecrã (é inegável a influência de Andrei Tarkovsky no estilo do realizador húngaro).

“O filme é a arte de ver. Ainda que o seu realismo seja, por vezes, uma fuga da realidade, o realismo, em última análise, é sempre revolucionário. Na luta pela verdade, mostrar os dados é sempre a arma decisiva. Na luta em defesa do homem, a melhor propaganda consiste em mostrar o homem”.

A frase citada é do crítico e teórico de cinema húngaro, Béla Balázs, de onde Béla Tarr talvez tenha retirado inspiração para o modo de ver e pensar o cinema. O realismo d’O Cavalo de Turim é uma fuga da realidade, pois temos uma narração que nos lembra disso. Caso não existisse esse recurso, acredito que este filme fosse visto quase como um documentário, e não uma história ficcional. Os dados são mostrados nesta luta pela verdade, a de mostrar o homem tal como é. A verdade acaba por ser o melhor veículo para a propaganda em favor do homem, porque a verdade é o melhor meio revolucionário – só com a verdade podemos esperar conhecimento, progresso, evolução e esperança.

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O aspecto técnico da obra merece todos os elogios e mais alguns. Se o som já foi mencionado, resta falar da direcção de fotografia, levada a cabo por Fred Kelemen. A câmara é uma extensão do olho humano, objectivo primordial da sétima arte, tal a mestria, controlo e planeamento dos realizadores e director de fotografia. É como se flutuássemos no espaço, com tempo para observar tudo o que nos rodeia. Quando de pé, as personagens são enquadradas mesmo no limite, de modo a que a cabeça não fique cortada. Não me recordo onde, mas lembro-me de ler algo como “no cinema, dar ar acima da cabeça é o espaço onde Deus reside”. Béla Tarr, com O Cavalo de Turim, assegura-se que esse espaço não existe – as ideias de Nietzsche estão espelhadas por toda a obra.

No quinto dia o cavalo deixou definitivamente de comer, e Ohlsdorfer resignou-se com destino do animal, e com o seu, por extensão. No final deste dia deixa de haver luz na casa. A solução é esperar até amanhã. Mas a luz não volta, não na totalidade. Apenas num diminuto rasgo que nos permite ver o pai a tentar descascar uma batata crua com a mão esquerda, e o prato da sua filha vazio. Também ela deixa de comer. As luzes apagam-se, tal como toda a esperança se apaga, e até o vento incessante dá por terminada a sua campanha. Ficam o silêncio, a escuridão e a confirmação da finitude humana.

Estreou há mais de dez anos aquele que Béla Tarr anunciou como o seu último filme. Numa conferência de imprensa, no Festival de Berlim, disse o seguinte: “A situação aqui não é a competição com outros filmes, não é sobre como fazemos o marketing. A questão é se o filme é autêntico, verdadeiro, se toca o espectador. Acredito que tudo o resto é completamente irrelevante … Não nos envolvemos nesse tipo de combate, pois assim perdemos a nossa autenticidade”. Se há filme que é autêntico, verdadeiro e que toca o espectador é este, uma despedida em grande do realizador húngaro.

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