And on that cheek, and o’er that brow,
So soft, so calm, yet eloquent (…),
She Walks in Beauty, Lord Byron
O último filme de Christian Petzold é um óptimo exemplo de obra de arte envolta em materialidade consistente. A sua forma oferece-se ao olhar com a mesma dureza da pedra que foi esculpida. Em termos narrativos, tudo parece simples: Leon (Thomas Schubert) e Felix (Langston Uibel) decidem ir passar uns dias à casa de férias de Felix para ambos poderem trabalhar, Leon no seu novo romance e Felix no seu portfólio de fotografia para admissão na escola de artes. Porém, na mesma casa, já se encontram Nadja (Paula Beer) e Devid (Enno Trebs).
Petzold, numa entrevista, admite que pretendia fazer um filme de Verão, inspirado em filmes como “Mónica e o Desejo” (1953), de Ingmar Bergman ou nos Contos Morais de Éric Rohmer. Na sua estrutura base este é um filme de Verão: quatro jovens deambulam por entre a praia e o mar, inseridos numa paisagem natural que vem despertar o desejo que se esconde nos corpos; os vectores afectivos que vão sendo traçados mais ou menos ao acaso; ou as conversas descontraídas numa mesa de jardim.
Porém, o filme é pontuado por uma série de gestos que oferecem uma nova consistência à matéria fílmica. É neste ponto que Petzold faz a transição do pretexto para o texto, da retórica para a materialidade. O primeiro gesto é o fogo que se propaga pelo território circundante. Se, à primeira vista, este parece ser um ponto narrativo, que pode levar o espectador a pensar que o incêndio entrará no filme como um elemento antagonista, que exigirá uma reacção de enfrentamento por parte das personagens, a natureza desta propagação é bem mais subtil. O fogo passa de ponto narrativo a gesto ao funcionar como um fora de campo indeterminado que paira, ao mesmo tempo, sobre as personagens e sobre o espectador. Ambos se encontram presos na mesma indeterminação: no limiar de uma crença que oscila entre o descanso que o sentido do vento parece dar e a experiência da verdadeira dimensão do incêndio: quando um plano vem mostrar o céu transformando num inferno vermelho povoado por helicópteros.
Outra transição da narrativa para o gesto reside no aparecimento de Nadja. Narrativamente, sabemos que Nadja já se encontra na casa, mas materialmente Nadja aparece aos olhos de Leon com a mesma ambiguidade com que o fogo se propaga na vizinhança. Nos primeiros dias na casa, a presença de Nadja é-nos dada através do voyeurismo de Leon. Os seus olhos seguem os rastros de Nadja como se fossem o ponto luminoso que vai consumindo o fio de um rastilho. Leon capta todos os signos que indiciam a presença de Nadja: ela é a mulher que dorme no quarto ao lado ou a dona dos cereais que ambos comem ao pequeno-almoço. Quando o olhar voyeurista de Leon já não consegue deter a olhada furtiva que lança para lá da porta entreaberta do quarto, começamos a sentir a sua presença através dos vestígios mais íntimos: Nadja é aquela que deixa a cama desfeita, que tem a sua roupa interior espalhada pelo quarto ou o diário pousado à cabeceira; Nadja aparece também como matéria sonora, ao sonorizar o seu prazer do outro lado da parede com os gemidos que Leon, inexplicavelmente, não consegue suportar. Finalmente, Nadja aparece em carne e osso, a caminhar do outro lado da janela. A presença desta janela no filme é esconderijo e intensificador contemplativo: é o escudo que resguarda a timidez de Leon e a moldura que enquadra os gestos graciosos de Nadja.
A narrativa do filme vai-se moldando ao sabor de um olhar que ganha carne e se torna gesto. Se existe uma particularidade da realização a destacar é a mestria com que a câmara de Petzold capta o voyeurismo de Leon em toda a sua intensidade. O fascínio de Petzold pelo olhar já estava presente em filmes anteriores. Em “Phoenix” (2014), é no olhar de Johnny (Ronald Zehrfeld) que assenta o momento fulcral de reconhecimento: Nelly (Nina Hoss), até então irreconhecível, aparece ao olhar de Jonhny, através de um signo no seu corpo, como pura iluminação. O olhar como função simbólica material, como momento de reconhecimento e religação entre duas partes. Mas se em “Phoenix” é o contexto narrativo que precede e concretiza a força do olhar de reconhecimento, em “O Céu em Chamas” (2023), Petzold insere o olhar de Leon na banalidade para o tornar num coleccionador de signos, que ele vai aprisionando e escondendo até começarem a transbordar e a verter para cima de Nadja – apesar da sua vontade em os manter escondidos.
O que torna esta presença do olhar como gesto puro é a forma como Petzold consegue conservar a sua frescura. Em nenhum momento se nota a intervenção forçada de um condicionamento exterior. A escolha de fisionomias é para este efeito um factor decisivo. Tanto Paula Beer como Thomas Schubert possuem uma candura expressiva – ela, como halo na superfície; ele, escondida por trás da máscara – capaz de dar natureza aos mais pequenos gestos. É através das fisionomias que a câmara de Petzold vai buscar a pungência que existe nos micromovimentos dos olhares. Uma cena onde estes movimentos se evidenciam é no momento em que Helmut (Matthias Brandt), o editor de Leon, se junta aos quatro para almoçar e Nadja revela que está a fazer um doutoramento em estudos literários. O olhar de Leon sobre Nadja é de surpresa. No final de Nadja recitar, por duas vezes, os versos de um poema de Heinrich Heine, o olhar de Leon sobre ela tem um peso avassalador; como resposta, vemos Nadja engolir em seco e logo a seguir um pequeno esgar, no franzir do seu sobreolho, suficiente para pontuar toda a cena. O filme torna-se palpável.
Ainda é o olhar – mais o do cineasta – que se evidencia num outro momento. Nadja, Felix e Devid vão jogar raquetes para o jardim com raquetes de luz. Leon mais uma vez prefere ver tudo à distância de uma janela. Dentro do quarto, observa os movimentos do jogo e os de Nadja. Quando a bola vem para perto da janela, Nadja aproxima-se, estagnando o movimento e, por alguns instantes, perde-se em pensamentos enquanto a raquete lhe ilumina o rosto. O olhar de Leon (a câmara de Petzold) torna esta imagem reveladora de um misterioso poder telepático.
Os campos e contracampos abundam. O cenário assim o exige. Esse movimento dialéctico entre o campo e o contracampo está já no vai e vem do olhar de Leon, que ora espia Nadja de dentro de casa, ora a olha desde o exterior; sendo a janela o eixo sobre o qual vai girando este movimento. É a janela que tem esta função de (re)enquadramento das personagens, que aparecem (re)enquadradas, no exterior e no interior da casa. É impossível desligar o olhar da janela que vai enquadrando as imagens, como é impossível desligar a janela do filme como um todo. A janela não enquadra apenas os olhares, mas o filme na sua totalidade. Existe uma continuidade entre o nosso olhar, o olhar de Leon, as janelas e as imagens que elas vão (re)enquadrando.
A capa de aparente simplicidade do filme esconde perfeitamente cada elemento fílmico, cada signo, cada objecto, cada pequeno gesto, cada ideia, cada detalhe mínimo que foi nele introduzido. Vemos o filme como olhamos para o mostrador minimalista de um relógio que esconde uma engrenagem altamente sofisticada – sem nada perder em naturalidade ou no seu movimento orgânico. É como sentir um movimento puro onde já não conseguimos perceber onde está a causa. Só nos resta olhar e sentir que também o nosso olhar já se tornou gesto; a partir desse momento misterioso em que o filme nos olha e em que sentimos que o olhamos de volta.