No seu último filme, “O Dia da Posse”, Allan Ribeiro filma o dia-a-dia do seu confinamento, em tempos de pandemia. O espaço do seu apartamento transforma-se num cenário de clausura onde o realizador nos apresenta Brendo Washington, um jovem estudante de Direito, que vai partilhando com a câmara de Allan os seus sonhos de criança, o momento em que se apercebe das diferenças de classe ou a descoberta da sua inesperada capacidade em suportar as imagens viscerais dos vídeos de cirurgias que vê no Youtube. Brendo é símbolo do corpo preso que se torna máquina de sonhar, desvelando, uma a uma, a sua boneca russa de sonhos.
Os muros vão sendo quebrados por uma câmara indiscreta que, ao lançar-se para o exterior, vai captando as janelas das fachadas dos prédios vizinhos cuja policromia das luzes interiores vai criando quadros da intimidade alheia. Cada janela enquadra outros corpos que se encontram a engendrar formas de resistir às imposições do confinamento. Desta forma, pela câmara de Allan, o cinema aparece como um precioso instrumento de resistência, capaz de mostrar, por um efeito rizomático, a forma como as vizinhanças conseguem criar novas possibilidades de vida para fazer face aos obstáculos criados pela nova realidade pandémica. Este alastramento da câmara para o exterior não encontra apenas vizinhanças humanas. As aves que Allan vai filmando e que aparecem, ora nos parapeitos das janelas ora nas chaminés e nos telhados, tornam-se, ao mesmo tempo, símbolos de uma liberdade humana suspensa e pedaços de recordação de um sentido de natureza perdido.
Se voltada para o exterior a câmara vai captando a vida circundante, o interior da casa representa uma oportunidade para um exercício de introspecção. Brendo é a interioridade reflexiva que cruza o seu profundo sentido de justiça – que o move a gravar declarações para publicar nas redes sociais – com os desabafos sobre a grave situação política e pandémica do Brasil – sobre a forma como a primeira agravou a segunda.
Allan opta por um registo directo que transmite a ideia de um cinema que se filma a si mesmo. As imagens onde Allan aparece com a sua câmara, nos reflexos dos espelhos ou no ecrã do seu telemóvel, remetem para o cinema-verdade vertoviano. A câmara é o cine-olho que o realizador vai espalhando pelos vários pontos do espaço do apartamento, tornando-se o prolongamento natural de um corpo limitado nos seus movimentos; ela torna-se o terceiro elemento vivo dentro da casa, fazendo a ponte entre a natureza que circunda o exterior da casa e a vida reflexiva que as declarações de Brendo vão criando.
No final, talvez Brendo tenha chegado ao seu dia da posse, onde a liberdade recuperada se transforme numa vontade de ver todos os seus sonhos, desde os mais individuais até aos de justiça social, tornados realidade.
*Texto escrito no âmbito do programa de formação e capacitação de jornalistas e críticos de cinema de países de língua portuguesa, o Talent Press Rio, realizado em parceria com o Goethe-Institut, a FIPRESCI, e a ABRACCINE.