25 de Abril

“O Poder do Cão” – A Lenta Dissecação do Pecado

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The Power of the Dog, de Jane Campion

“O Poder do Cão” é o primeiro filme de Jane Campion desde há 12 anos e soa como se fosse o seu primeiro filme, como se tivesse começado tudo de novo. Numa das entrevistas que deu, a realizadora assim o assume, como um filme de muitos começos, sobre os quais aqui não se dissertará.

 

Admirável é que alguém como Campion, com a sua carreira e idade, se proponha a mudar o seu jogo e com humildade crie, em conjunto com uma equipa brilhante, aquele que é, para muitos, o filme do ano.

A autora destas linhas inscreve-se na lista dos que assim o consideram, não apenas pelo seu valor como peça de arte, mas pelo simbolismo da sua criação, fruto tanto de trabalho árduo como de delicadeza, entrega e coração.

“O Poder do Cão” é mais do que apenas um filme, são vários, aquele que é visto da primeira vez até à sua primeira metade; aquele que é visto quando se chega ao final; e, pelo menos, mais aquele que resulta do assombramento de perceber aquilo que estava mesmo debaixo do nariz do espectador quando ainda não tinha assistido ao desfecho.

Estas linhas não desvendam o essencial, apenas mencionam que o final muda muita da percepção que o espectador possui ao longo do filme e que à partida se espera de quase toda a ficção.

Certo é que em “O Poder do Cão” esse final é uma revelação que dá início a um outro filme ou até vários e aí reside um dos seus muitos pontos de atração quase fatal.

Frequentemente apelidado de western, “O Poder do Cão” é tão western como “A Desaparecida” de John Ford e retirar do caminho essa etiqueta é por si só motivo de libertação do olhar para a verdadeira essência do filme. Todavia, em muitos momentos “O Poder do Cão” parece querer prestar homenagem, mais do que ir buscar inspiração, àquele lendário filme, o que representa um elogio à sua humildade e paz de espírito.

Adaptado pela própria Jane Campion a partir do romance homónimo de Thomas Savage, de 1967, esteve para não ser realizador por ela, mas o destino quis que depois de muitos acasos em torno do livro, acabasse por ser a realizadora e a autora do argumento.

Ainda que, com espanto, este seja o seu primeiro filme cujo protagonista é um homem, é sintomático, pelo menos, que seja adaptado do livro de um homem que viveu ocultado na sua alegada homossexualidade no contexto de uma América rural que para muitos era sinónimo de fatalidade.

“O Poder do Cão” gira em torno de dois irmãos, Phil e George Burbank (respectivamente interpretados por Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons), que fazem vida relativamente confortável com os resultados pecuniários do seu rancho no Montana dos anos 20.

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Jesse Plemons como George Burbank

Aqueles irmãos são diametralmente opostos e algo de intrinsecamente trágico parece ligá-los. Numa das cenas iniciais, Phil apelida-os de Rómulo e Remo, os irmãos alimentados pela loba, e embora seja uma referência à sua educação erudita parece representar um prenúncio de tragédia grega.

Quando brindam todos juntos, os irmãos e os trabalhadores do rancho, mais do que assinalar a fundação de uma cidade, Phil assinala um vaticínio e o mote para todos os acontecimentos que se lhe sucederão.

No personagem de Phil perpassam inúmeros sinais simbólicos de destino, como quando insiste em acabar uma corda entrançada para Peter (Kodi Smit-McPhee), o rapaz cujo pai se enforcou outrora.

A corda sugere ser símbolo da imbricada teia de sentimentos, intenções caladas e frustrações imemoriais e representa uma oferta resultante de esforço físico que é tanto amor como condenação, da qual nunca fugiu, desde os tempos do seu herói Bronco Henry.

É pela subtileza da sua imensa crueldade que “O Poder do Cão” se apresenta tão belo quanto inesperado. Não só por isso, contudo, também pelo que não conta logo, pelos momentos de felicidade tensa em que permite que os seus personagens vivam suspensos.

São pequenos gestos, delicadas flores de papel que entram em combustão sob a ação do fósforo, gotas de sangue que caem sem som no trigo, os tecidos que ondulam ao vento, a pequena lasca de madeira que faz cair os tiranos mais arreigados.

“O Poder do Cão” é ainda um enorme tratado sobre a dualidade humana, de que Peter, o filho de Rose (Kirsten Dunst) é um belo exemplo. Ao mesmo tempo que captura um coelho para a mãe e o consola em seu regaço, também o disseca na secretária como treino para vir um dia a ser cirurgião.

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Kirsten Dunst como Rose Gordon

Ninguém é apenas bom ou mau e todos os personagens demonstram, com o devido tempo, a multidimensionalidade das suas personalidades, as suas sombras, os seus lados de luz, as suas fragilidades.

A paisagem também não é alheia à dicotomia e dilemas dos homens que a habitam, a quem é permitida a mera existência face à sua beleza. Em claro contraste com a vasta amplitude das planícies do Montana (que no filme se localizam na Nova Zelândia, por vicissitudes de orçamento), a casa dos irmãos é um amontoado escuro de tijolos e madeiras antigas.

Uma casa cinzelada para reflectir aqueles que a habitam, mais do que um espaço de residência, quase sem luz no seu interior, de ambiente sufocante contendo o grito para que a libertem – tal como os seus habitantes.

É sintomático que Rose comece a beber às escondidas quando para lá se muda, ao casar com George, embora muitas das suas fragilidades residam no passado, do qual nunca se conhece demasiado.

À volta, uma imensidão de espaço e luz que impressiona, mas que não ofuscam com frequência qualquer um dos protagonistas, residentes, sobretudo, na penumbra da alma.

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Benedict Cumberbatch como Phil Burbank

No final, a autora destas linhas ficou com a sensação de que algo do espírito maquiavelicamente oculto de “Linha Fantasma” perpassa por “O Poder do Cão”.

Por pura ignorância ou distração, não sabia que Jonny Greenwood, o eterno guitarrista genial dos Radiohead, assina de forma agigantada as bandas-sonoras de ambos os filmes.

Se dúvidas existissem quanto às ligações que o subconsciente opera nas costas de todos, aqui está a prova, ainda que refutável e perfeitamente subjectiva.

Há uma linha que conecta a sensibilidade e nem tudo o que se sabe se encontra à face, muito do que importa flui em segundo plano, escapando constantemente às tentativas de racionalidade.

“O Poder do Cão” é um desses filmes que imita a vida na perfeição, completamente dependente do instinto, mas julgando estar em plena sintonia com a razão e o bom senso.

Vai falar-se sobre ele daqui a uns anos, como Campion deseja, e que com estas palavras se possa estabelecer aqui um verdadeiro vaticínio sobre um dos, senão o melhor, filme que este (outra vez distópico – ou será utópico?) ano de 2021 entregou – é uma dádiva.

“O Poder do Cão” estreou em alguns cinemas a nível internacional a 17 de Novembro, mas em território nacional está disponível para ver na plataforma de streaming da Netflix desde o passado dia 1 de Dezembro.

Este texto não foi escrito ao abrigo do Acordo Ortográfico

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“O Poder do Cão” – A Lenta Dissecação do Pecado
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